sábado, 8 de março de 2008

SE UMA MARIA REDIME, TODA ANA ENLOUQUECE






Quero fazer a exegese
De uma mulher obscura,
Uma mulher clara como o dia,
Mas como um dia de lua.

Sei que cresce, sei que míngua,
Como todas as marés,
Sei que as puxa e se afoga no mar,
E com mais um sopro se as afasta para lá.

Olha, olhos perdidos, o nada recorrente,
E, assim, encanta-se com o que vê;
E se olha, olhos perdidos, para si,
É o rio próprio que não pode conter.

Mas, mulher, digo-te eu:
Esses oceanos são comuns.
E mesmo eu,
Que não sou novo, não sou cheio,
E já não tenho cara de lua,
Experimentei alguns só meus.

Se cala, essa mulher,
Nela pulsa a palavra contida
E bem mais forte que seu coração;
Se diz, com pressa, a palavra maldita,
Recita, tácita, uma oração.

Blasfêmia! alguém diria.
Mas quem o diz sem atentar
Para a contida beleza da palavra,
Apenas diz amém sem nada rogar,
Diz amém ao amém
E um outro amém ao “assim seja”,
Sem saborear “kirche” em alemão,
Esperando, em português, a cereja que não virá.

Sei que há tortura, desventura,
Que há martírio, sabedoria,
Bebidas solitárias e partilhadas tonturas
Em toda Ana, uma Maria.

Em todo homem, um devasso;
Em toda mulher, uma mentira;
Em todo nome, um destino;
Em toda vida, mortes várias.

Não faço rimas:
E nunca as quis fazer;
Minha intenção, a princípio,
Era desvendar a mulher,
Tirando sua roupa toda,
Sem sua nudez revelar,
Porque reais intimidades
Não são as marcas que se tem
Escondidas pelo corpo,
Escavadas, silenciosamente, em grotões.

A chave da alma que procuro
Se acomoda a uma única fechadura.
E ser homem, ser mulher - não importa -
É ser na literatura pia
Um rico que virou pobre;
É ser na história real,
Uma lágrima de Maria,
Trazendo a pobreza no nome,
Não querendo filhos fazer
Para não lhes legar a palavra que lhe é fácil.
E se os tiver,
isso é estimulá-los a sofrer
Sem poderem nome ao seu sofrer dar
(que isso é sofrer ainda mais).

E sem nome, que do sofrer se dirá,
Se há compêndios a estudar
De magia alvinegra
Para filtros do amor.

Ao (se) amar, desprende-se de si,
Solta-se e se flutua no ar:
Se isso encanta olhos alheios,
Os que vêem sem estarem no olho da paixão,
Os teus, Maria, como hão-de ficar?
Os teus, Ana, como hão-de chorar!

Se choras, é que já és mãe,
Mesmo que jamais tenha tido um filho:
E as mães, Ana ou Maria, devem chorar,
Ainda que finjam que choram pelos filhos,
Filhos que jamais tiveram.
Então, mães, choram por quê?

Se te alegras e não tens filhos,
Perguntam-lhe:
Mãe, para que viver assim?

É que Maria não nasceu assim,
É que Ana nem sempre foi assim:
O sofrer lhes veio depois.

Em Ana, a vida toda
Só de paixões se compôs.
Paixão francesa: loucura;
Paixão inglesa: rubor;
Paixão grega: indistinta;
Paixão sem pátria: furor.
Porque paixão deve ser só,
Mesmo que só não haja paixão.
Deve ser só o rolar
E não o aspecto do chão.
É nesse rolo se ferir,
É num colo macio se machucar,
É em braços comprimir-se,
E com mais se afastar.

Quem poderá negar a Ana,
Uma Maria qualquer que seja,
Seu complemento nominal?

E a Maria, como lhe recusar
O benefício de ser Ana,
Sem mais complementar.

Eu quis desfazer o segredo,
Mas minha dúvida só aumentou.

Por fim, quis encerrar com rima,
Mas tudo em branco hei-de deixar.

CHICO VIVAS

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