domingo, 1 de novembro de 2009

E MAIS NÃO DIGO



Que tenho eu a ver com isso,
Com isso de asas vermelhas coradas,
Com isso de penas brancas imaculadas,
Se não tenho fogo,
Se não acendo cigarro,
Se não choro lágrimas de sangue
E nem uso metáforas
Para cuspir, escarrar, ferir ou curar?
Se sou de mim mesmo a duplicata vencida
De um espelho que espelha o nada,
Tanto quanto não nado nada,
Nadinha de nada?

Que quero eu com isso de vida,
Da vida de agora, da vida de depois
De agorinha mesmo,
Para um depois sem nexo num dicionário frouxo
Cujas páginas amarradas a nós
Desprendem-se da brochura sem terem para onde ir?
E eu fico a pensar que posso ser
O gari feliz de ruas imundas
Carregadas de páginas soltas a rodar ao vento,
Recolhendo-as eu com olhos de amante,
Amantes de palavra(s) que diz(em) mas não prova(m)
O negar quando se quer, o querer quando se nega,
O querer negar para devolver
A prova amarga e multiplicada.

Fujo de mim e corro adiante.
Diante de mim, porta-se sempre sentado
Um demônio sem a minha cara,
Um anjo com minha dor:
E a qual dos dois primeiro me dou?
Ao dito cujo em pé e diminuído
No seu valor de sacerdote
De ritos rubros, de peito desnudo
Ou ao anjo sentado sobre almofadas lisas,
De seda que com sua pele se assemelha,
Pele sem dor, sem marca, sem cor?

Se me entrego ao primeiro que passa
E me apresento mostrando otimista
As primeiras linhas que aqui eu próprio escrevi,
Ele há de me repelir com mãos agitadas,
Sem entender o que eu quero dizer,
E eu sem saber por que sou negado,
Se me mostro com derradeira esperança.
Com as últimas palavras que aqui sei lá,
As derradeiras que aqui se lerá,
Me olhará perplexo como um louco,
Louco ele de raiva de mim,
Louco eu por exibir assim
Um papel que antecipa
O que nem mesmo eu ainda sei.
E se olho para o lado, um tridente afiado
Que retira dos meus dentes as lascas de carne,
Que costura na minha carne as marcas dos dentes;
Três dentes como uma flauta doce
Que se crava em meu peito que abusou da razão
E mais uma vez repete sua intenção
De aceitar o feitiço da música amena
E dar o braço ao anjo e ir para o alto,
E quando no alto dos píncaros fincado
Do firmamento instável de cansados imóveis,
Não mais sentir ao olhar para baixo
O medo de toda a vida de lugares sem base,
Desejarei então morrer de afeto falso
Pelo outro que deixei caído,
Esperando que eu o olhasse,
Sem sentir tanto temor:
Que valor afinal pode haver
Em subir por subir,
Sem a expectativa de descer,
Mesmo sem isso querer?

Me rouba, grito.
Me toma, clamo.
Me arranque, digo.
Me faça seu, afirmo.
Me devolva o medo, suspiro...
E já lá está ao meu lado,
E só de olhar tremo-me todo
E nem posso mais olhar o que há
De tão distante embaixo dos meus pés,
Que só de pensar rasgo-me de pavor.
Mas se for envolvido com braços fortes,
Sentindo-me quente antes de ao inferno chegar,
Compadeço-me dos olhos úmidos do anjo
Que me largou atendendo-me a mim,
Ao meu pedido de ir-me dali
Para um bem baixo, sem pressentir
-ou para o mais aquém do mais além-,
Será tanto o medo da altura que me separa
Do mínimo chão de uma pouca firmeza,
Que, sem falar, rogarei
Que me roube, que me tome,
Que me leve, que me arranque,
Que me faça seu,
Que me devolva a indecisão
De achar belo o efeito trágico
De uma lança em fogo tocando o corpo
E de achar comigo o efeito singelo
De uma doce música que me adormece,
Se alimentar de sonhos arrojados a noite densa
E se me acordar com olhos púberes.

Se vivi até aqui sem dizer sim, sem dizer não,
Posso sim viver até lá,
Dizendo assim a um, a outro dizendo não,
Iluminando com vela branca um,
Mas dizendo sim ao outro:
E deixo-os me disputarem,
Estapeando-se com recíprocas imputações
De golpes baixos, com palavras sem calão,
Até me entediar com tanto contender.

O tempo passou para mim
E eles ainda a brigarem.
Agora, sou só o nome esquecido em memórias amigas,
Amigas demais para me convencerem,
Amigas demais para que eu caia na sedução do contrário.
Mas sabem ainda de cor o nome que eu dei
À dor que me faz dizer o que nem sei,
Porque tudo isso é invenção
De uma mente confusa,
De um demente sensato,
De um lúcido fotofóbico,
De um homem -e isso é quase dizer tudo-
Que não sabe mais o que dizer.


CHICO VIVAS

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