quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

L'HASARD EST MA SORTIE




Meu olhar de lado
Seguia teu andar reto.
Depois, meus olhos prontos
Fixaram-se em tua indiferença tonta.

Insisti, submisso, na sequência;
E um voltar de cabeça, sem revelar o rosto,
E um lançar de vista, sem agarrar um ponto
Não me deram a certeza,
E ainda me permitiram a dúvida;
Não me fez impetuoso herói,
Mas andei com passos estrábicos
Em ziguezague, mesmo em estrada larga.

Perguntei-te, com meus olhos:
Negaste-me teu nome.
Disse-te o meu, sem coragem de olhar
O corpo mudo que me ensurdecia
Com seus negares aprendidos,
Com meus desistires arrependidos.

O meu, já surdo às cantilenas
Da moral, do pudor, da conveniência,
Gaguejava palavras incompletas
Com dicção de clareza insinuante.

Não nos tocamos as mãos.

A mão procura, reta e louca,
E encontra, torta e solene,
A ave nascente, desplumada,
Sem canto,
No canto mudo em que a natureza a pôs,
Acomodada, mas em rebeldia,
No emaranhado do ninho,
Feito de fios de diversos nós.

Ornitólogo não sou,
Em amante nunca pensei
Ser de pássaros não canoros, silenciosos.

Liberto, enfim, da gaiola,
Sou eu o primeiro a voar,
Pés no chão, mãos à toa,
Pupilas abrindo-se na escuridão do dia,
Boca seca em fonte próxima,
Relva de espinhos que parecem de palha
A convidar para o descanso no feno.

Sigo, em viés, de alto a baixo,
Longitude, diagonal,
Sem um norte qualquer, sou sul,
Leste, Éden, oeste bravio.

Não falo, por princípio, de civilidade,
Em regras observadas à mesa, não falo.
Puxo a cadeira, mas só cedo o lugar
Por mera conveniência.
E se me sento, nao falo.

Volto a ler, cigano distante,
A palma orvalhada da minha sorte
E lavo meu destino no prazer.

E nego, fechado.
E abro, perplexo.
E não corro, covarde.
E fico: para onde ir?

Discuto filosofia com a espada.
Declaro guerra ao saber.
Sou astronauta e não olho a lua.
Colo estrelas na pele nua.
Desafio a resistência do contendor,
Crendo-me já fortalecido,
Como jamais houvera aparentado.

Até penso - será delírio? -
Em ter para mim um certo filho.
E rio...

Já é um mar o que nos separa!

Na pressa da corrida ao leito descoberto,
Gravam-se, na vegetação rasteira,
Fragmentos da roupa dispensada
E recolhida nessa ida...

Penso gritar que me esperes,
Que me leves, ainda que pesado seja,
Nesse mesmo barco teu,
Porque nadar eu não sei,
E sendo assim, como é que hei
De atravessar um temporal?

Céu sem nuvens, não vejo mais
O tal pássaro em muda,
Ficando eu com as mesmas penas,
Como se fora uma ave muito estranha
Ao paraíso de origem.

Desencanto!

Com o igual não-virar-se que me tocaste,
Foste sem te voltares.
Com passadas retas, equilibradas
Sobre a volta por exíguo caminho,
Não vacilo mais, não fraquejo,
Mas, ai!, que olhos indiferentes,
Em tudo o mais iguais aos que se foram.

Não se voltam: sigo.
Sigo: penso torto.
Se é reto, se é cego,
Se é mudo, se sou louco...
Eis-me de novo aprendendo a amar olhar.


CHICO VIVAS

terça-feira, 1 de novembro de 2011

CATACLISMO




Não há desencontros.
É que todo encontro
Traz em si, dissimulada,
A marca das partidas,
Nas quebradas, cantos, esquinas,
Ao longo da vida inteira.

Mas se cada chegada
É sempre o lado oposto
De mais uma saída,
Nem por isso se deixa de se encontrar,
Temendo a hora da despedida,
Porque em cada um que vai,
Achamos em nós uma saída
Para as idas descontroladas
E que é uma saudade.
Invenção, talvez, de alguém
Que quer a todo custo
Justificar um desencontro,
Usando a desculpa sempre tida
Como argumento indiscutível,
E que é aquela partida
Que não deixa uma saída.

O que fazer, então, se houve
O que chamam de desencontro,
E que pode ter muitos outros nomes,
Podendo se chamar tempo, quando falta,
Podendo se chamar tarefas, quando muitas,
Podendo se chamar chuvas: argumento temporal,
Podendo chamar sol demais, se verão?

Até gostaria que houvesse
Um rápido fim do mundo
(não um que destruísse
o mundo rapidamente,
mas um que acabasse
e logo recomeçasse,
acabando logo com o fim
e recomeçando o mundo de novo),
Para assim ter com que
Me desculpar pelo desencontro.
Porém, é mais fácil - e bem mais -
Se pôr um fim em todos os encontros
Do que este mundo chegar ao fim,
Por mais desencontro que haja.

E se isso acontecer,
Apesar de improvável,
Prometo de véspera sair
E não faltar ao novo encontro.

Um dia, há de ser.

Tão logo, por que não?

No possível, realista.

No impossível, pois amigos.

E se não conseguir (teu) perdão,
Agora tenho já duas culpas:
Não te ter encontrado, a primeira,
E para complicar, uma segunda mais:
Estes versos ter escrito.

É mesmo o fim do mundo!


CHICO VIVAS

sábado, 1 de outubro de 2011

DIZER NEM POSSO IMAGINAR



Há palavras que, sinceramente, não digo:
E nunca jamais será uma delas.
Mas basta a musa à frente,
Atrás a musa basta estar,
Para a língua tremer,
O pensamento vacilar,
E as palavras todas
Desejarem sair.

Nunca! digo,
Mas de nada isso adianta,
E jamais vai adiantar.
Acabo por dizê-las
E, convicto agora do que digo,
Digo-as sem convicção,
A ponto dos meus maxilares se ressentirem
Com tanta palavra que digo,
Sentindo dor inaudita
Que, apesar do incomum,
Não inaugura inédita dor;
E eles se sentem assim
Por terem de se conformar,
Conformados, à forma
Desse meu estranho dizer.

Não posso parar,
Mesmo se quero,
E com isso quero mesmo dizer
Que não posso,
Por mais que deseje parar,
Por mais que essa musa
Não me inspire confiança.
Creio até que não é ela
Que me solta a língua presa,
É esta mesma que se desenrola,
Que inventa uma musa tesa,
Hierática,
Soberba,
Ora salobra,
O que me parece ser
Mais uma manobra da língua,
Ora língua doce,
E doce ser me parece,
Embora a outro possa parecer
Uma insípida língua torpe.

As palavras reveladas
Escondem mais do que revelam,
E nesse esconder-se,
Nem as musas sei quem são.
Talvez sejam negativos a serem revelados,
Talvez, positivamente,
Não passem de um clichê
Já amarelado,
Seja por ter sido usado tanto,
Passado por tantas mãos,
E isso sem falar das muitas línguas
Pelas quais deve ter passado a musa,
Seja por ter há muito entrado em desuso,
Francamente.

Marginal de mim mesmo,
Sempre à beira dos meus penhascos,
Sem jamais me precipitar,
Apesar da respiração da musa na minha nuca,
Incentivando-me a desabar,
Sou apenas circunstancial em meus acasos,
Definitivo em minhas passagens,
Hesitante na minha firmeza
E firme na minha fraqueza.
E pela fraqueza dos versos passageiros,
Vê-se já quão firme sou.
Circunstancialmente apalavrado,
Eternamente verse já dor.
(mas isso é passageiro!)



CHICO VIVAS




quinta-feira, 1 de setembro de 2011

EMBATE BOCA



Antes que avance (aqui)
como avalanche de neve
desabando célere de montes,
como que cobertos de água branca,
intercepto tua lágrima,
nascida tão no alto teu,
num olho-d’água à flor da pele,
com o ardor da minha língua;
e não falo,
e não falo de idioma;
falo sim de impedir
que ela se lance
num lance tão arriscado,
por tuas escadarias abaixo,
em súbita semântica
sem real significado.

Falo,
digo mesmo,
como se falasse de um beijo
de língua - a sua ponta,
de lágrima - a tua aponta,
e lá vai,
e cá vem,
e já avanço então,
como serpente ansiosa,
bêbada de tanta sede,
sendo a lágrima seu oásis.

Toco-a com a ponta
e salgo a minha língua,
destruindo tua lágrima.
Não contente, sem tristeza,
persigo acima,
apesar do cansaço que dá à língua
elevar-se tanto assim,
quando é de sua natureza
apenas descer,
desde descer com
até com aspas descer
e “...”
saio lambendo o caminho
que em ti ela abriu
e em mim, maio,
como se pesquisasse
em idioma estranho
o leito agora seco
de um rio de grave importância
para a geografia do lugar.

E indo assim, de cá para lá,
ao, enfim, lá chegar,
vírgula,
ao teu olho,
ponto.
E ali me lanço como num lago,
mas não me algo,
saio seco:
por quê?
porque as águas nos olhos,
que são para um rosto
como que seu olho-d’água,
não saciam a sede,
a menos que se derramem:
é como se em frente a um lago doce
não se pudesse beber;
é como ter de esperar,
e ter de percorrer
o caminho de volta
até um determinado lugar,
que fica num ponto incerto,
em que a água que alaga o lago
cai, vinda do alto
em forma de cascata,
e então beber.

De nada me adianta
escalar teus riscos iminentes
e ir ao teu lado diretamente,
com minha língua sedenta;
não, é preciso esperar
por uma avalanche,
uma gota se desprender de lá
e desabar.

De tanta sede passar,
estando às margens do lago
(estando ao lado da margem
sem poder lhe rabiscar),
aprendi a dominar o idioma,
sem me tornar um filólogo,
um semântico,
um sarcástico,
um irônico,
um bombástico,
e, pensando em água,
aguardar a doce lágrima.

E já agora me arrisco
à sua vista não me exasperar
e correr ao seu encontro
com minha língua estimulada;
deixo-a rolar, deixo-a correr,
deixo-a avançar, quase a se perder...
em vão.

E eu morto de sede então,
deixo-a ao seu limite chegar,
à fronteira da tua boca aportar,
até que sintas em ti teu próprio sal,
e aí eu...
com minha língua esticada
avanço na tua, salgada,
docemente...


CHICO VIVAS

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

NAS ASAS DO CONDOR



Como ser um poeta sem dor?
Como sê-lo sem a própria dor,
mesmo que fale de outra, ‘alheiador’?

E não te preocupes tanto assim,
Que não hei de mais ainda perguntar:
O que é ser poeta
Sem ser (um) sonhador?
Como ser poeta e dormir à noite
E, assim, sonhar com coisas do dia?

Ser poeta não será - não sei -
Dormir de dia e assim sonhar
Com os espectros que fazem do dia
O que só o brilho confuso da noite
Consegue iluminar
Sem de todo revelar?

Dormir à noite é sonhar
Com a unha comprida do dedo do pé
E que se se esqueceu de cortar
(mas que sonho comprido!)
e acordar desejando cortá-la.
Dormir de dia é ser poeta,
É sonhar que não se tem unhas,
Que nem dedos se tem
Ou que no lugar das unhas há dedos,
E no lugar dos dedos, o que há?

Ser poeta é acordar ainda de dia,
Desse sono dormido com sol,
E querer já ter a resposta
Para o que no lugar dos dedos deveria haver;
É anda arriscar isso, tentar aquilo,
Mas não como quem busca a verdade,
E sim como quem ensaia escrever um poema
E erra.

Não um poema sobre unhas nem sobre dedos,
Nem mesmo sobre o que é ser poeta.
Escrever um poema que erre
E que acerte
Ou escrever um que acerte sempre,
Mas que ninguém gostará de ler.



CHICO VIVAS

sexta-feira, 1 de julho de 2011

PARA QUEM ANDA NA LINHA


Se tu confias em tua língua,
Eu me fio;
Se na tua enfias a linha,
Confio-me na tua.

A linha é fina, fininha,
Mas se se a olha
Bem de perto, pertinho,
Ver-se-á que não é um fio,
São como várias línguas enroladas,
Enroladinhas,
Uma torre de babel.

Aproximo-o dos olhos, olhinhos,
E com a ponta dos dedos,
Com unha curtinha,
Tento desenvolver a linha,
Separá-la dos vários nós,
Das várias línguas, e desconfio,
E consigo.

O que vejo, então,
É como a língua de uma cobra
Mostrando sua bifurcação:
Mas para quais caminhos?

Lembro-me assim de que um dia
Na tua provei o veneno
Sem desconfiar,
Qual serpente esquecida
Da tua natureza astuta,
E deixei-me, como fio,
Enrolar-me na linha,
Na curva,
Nas parábolas,
E quando chegamos à elipse,
Desconfiei.

Era tarde demais!
Olhei o céu em busca de lua:
Eclipse total.
Restava na minha a memória da tua,
Uma língua feito uma linha
Carregada de nós,
E tantos que se se lhe passar o dedo,
Na língua, na linha, no fio,
Sentir-se-ão os nós
E quase nada de ti.

Mas se esses olhos, que viram
Que a linha é feita
Não de um,
Mas de mais de um fio,
Se aproximarem da língua,
Não conseguirão, assim de pertinho,
Desatar esses nós?

Talvez.

Mas, desfeitos,
Sem mais lembrança de nós,
Será só uma língua que a olhos distantes
É feita dum único fio.
Será só uma língua
Cuja ponta não se bifurca
E não mostra caminhos.

Perdido, perdido,
Nem de Ariadne o fio.


CHICO VIVAS

quinta-feira, 2 de junho de 2011

IH!...EU VI!






Eu? Vou indo!...

Quando vou, vou,

Mesmo se não vou voando.

E ainda quando volto,

Vou,

Porque essa minha volta

É como um “vou indo”,

Só que em sentido contrário:

O que me faz dar voltas no círculo.

E isso me revolta,

Sem, no entanto,

Que eu volte atrás,

Até porque as minhas tentativas

De isso fazer

Deram em nada,

Com aquela re-volta transformada

Numa ida como outra qualquer,

Fazendo dessa minha

(que só por hábito possessivo chamo de minha)

Um ir e vir sem do mesmo ponto sair.

O que eu queria

Era mesmo ir,

Quando fosse,

Fosse isso quando fosse,

Quando estivesse indo,

Ainda que diga “vou indo”

Em momentos em que

Para lugar algum eu voo,

E, na volta, voltaria

De um outro jeito.


CHICO VIVAS

quarta-feira, 1 de junho de 2011

ROUPA DE CAMA



O lençol fino de seda gasta
cobre o corpo lasso e opaco:
o tal pano é tão gasto
que o brilho do lado sedoso
parece emergir direto do corpo
ali deixado
e já tão frio
e já tão gasto
que quase se confunde
com o lençol tecido
com fios emaranhados
das linhas inescritas
das urdiduras inexpressas
das tramas natimortas.

De súbito, um movimento:
mexe-se o pano,
anunciando a estreia,
ou mexe-se o corpo,
dando sinal de vida?

Foi só um vento indiferente
que avançou ao comprido
do pano,
do pano que recobre o corpo,
provocando ondas de seda,
como no panejamento
de um santo em pose clássica,
em êxtase barroco.


Um vento, agora apressado,
levanta o pano
como se olhos bem curiosos
não se contentassem
com o espetáculo à mostra
e à vista do mistério,
invadissem as coxias.

E não é um corpo apenas que jaz
sob a fina coberta de seda:
são dois.
Tão gastos,
tão lassos,
cansados de serem um só.

Ao terceiro sinal,
não o começo que se espera,
mas o fim:
é esperar para (não) ver.




CHICO VIVAS

domingo, 1 de maio de 2011

UM POUCO DE JUÍZO AFINAL



Meu peito plano, sem curvas
(ou curva, sem planos),
Não sei como dizer,
É como uma câmara ardente
Que guarda um lado sinistro,
Um coração já morto,
Rodeado por círios candentes
Em sua frieza espectral,
Lançando para o alto
(o que será que querem alcançar?)
Chamas curtas
E que não iluminam como devem
O que jaz sem vida,
E servem só para realçar
Os estranhos contornos da morte certa.

Embalsamado e só,
Sem especiarias em volta
Que recendam a oriental torpor,
Nem com riquezas faraônicas
Que reflitam (n)um metal polido
A luz escura do ambiente;
Também não há alimentos,
Porque esperança já não se tem
De que se ressuscite com fome.

Não há filas de despedida,
E as poucas lágrimas que se “ouvem”,
Soam distantes como se
A carne magra quase em ossos
Isolasse a vida lá de fora,
Sem deixar penetrar naquele dentro
Um ruído que não lhe alteraria a dor.

Quem é, não sei,
Que vigia esse horror
E não deixa a vela terminar
E já põe outra em seu lugar,
Criando essa estranha imagem
De um sol num poço vazio.

Para que luz?
Se rígido e já sem cor,
Dorme sem sonhar
Um coração morto
Que nunca mais há de acordar.
Para que todo esse ardor venerável
A um ídolo desmascarado
Que sucumbiu sem vitórias
E nenhuma mulher de verdade amou?

Pois que o enterrem de uma vez,
Sem louvor, em cova rasa!
Atirem-lhe terra só um pouco
E não lhe marquem com um sinal da cruz!
Que lhe nasçam urtigas,
Urzes, ervas daninhas!
Que pisoteiem esse terreno baldio,
Sem saber o que ele esconde,
Os ágeis pés de crianças jovens
(há as velhas!)
Numa correria vibrante!
(e se fizer noite de repente,
um susto as despertará,
como se assombração presenciassem:
em desabalada correria contarão
ter um fantasma encontrado,
e tremerão com certa alegria
por poderem ter sido testemunhas
dessa cena do outro mundo).

Um dia, mais à frente,
Aprenderão todas as crianças,
Para seu próprio desencanto,
Que existe fogo-fátuo,
Que é combustão espontânea
Dos gases que emanam da terra
Decomposta em sua matéria orgânica.
E já nessa idade em que
Ávidas estarão por amar,
Não quererão acreditar,
Se surgir alguém a lhes narrar,
Que fincado ali estava
Um peito pouco casto,
Tendo ao centro, mais à esquerda,
Um coração completamente morto;
E que as chamas em que pequenos viram
Não é a ciência que explica:
Era só um ou outro círio ardente
Que, curioso, escapou
Da sala fúnebre em mim
E pôs sua chama para fora,
Como um submarino submerso
Tem saudades de fora do mar,
Gostando mesmo é de mergulhar fundo,
E que lança olhos para a terra
E aí encontra um cemitério
De crianças todas mortas
E que morrerem sem amar,
Por mais que tenham tido coração.



CHICO VIVAS

sexta-feira, 1 de abril de 2011

QUE TROÇO É ESSE?



Destroço o barco,
E com isso,
Destraço a linha,
Desfazendo a rede
Que me prenda ao mar:
Sem âncora porque
O que me prende lá
Não me agarra pelo pé,
Mas toma-me,
Mãe que não é,
Pela mão, pela minha,
Como se essa rede fosse uma linha
Atada à minha, à mão.
Apesar de tudo desfeito,
Dito e feito como não disse direito,
Caio na rede,
E de boca aberta,
Sem uma palavra,
Como se todas elas
Ou naufragado tivessem
Ou, por outro lado,
Com a boca cheia d’água me deixado tivessem.

Que saudades de um anzol
Que me capte,
Mas que me fira,
E não que me pegue pelo colo
Como se me acalentasse em seu seio.
Um ferro retorcido,
Uma cedilha exilada do seu cê(r),
Como uma interrogação à qual
Falta um ponto
Que não lhe faz diferença;
Mesmo que, retorcido,
Enferrujado o cê,
Carcomido o ser,
Indiferente a interrogação
De um ponto de exclamação,
Sem poder se definir
Se surpresa!
Ou se não...ser?

Que saudades de um só,
De um sol que é sempre assim!
Que saudades de mim,
De um assim que se pareça comigo,
Ou de um assado ao sol,
Ali, solitário!

Do mar não tenho saudades:
Também, não sei nadar!
E assim,
Teria saudades de quê?
De morrer afogado?
De naufragar de medo?
De me debater sem oposição?

Essa é a diferença
Entre mim e quem,
Quem eu nem sei,
Que saiba mesmo viver:
Eu, por não saber nadar,
Não vou ao mar,
E assim saudades dele não terei
(e que me custava dizer
que tenho saudades do mar,
mesmo que durante toda a minha vida,
temesse nele entrar,
ou que tenho saudades do mar,
e das minhas entradas narrar
todas as minhas saídas,
ainda que nunca na vida
tivesse aprendido a nadar)?
Ele, esse quem
(e se quem eu sou não sei,
que dirá saber quem é
esse outro que não eu!)
que nadar sabe muito bem,
poderá dizer que não sente do mar saudades
porque não sabe nadar,
sabendo muito bem o que diz,
ou pode contar as aventuras
pescadas ali mesmo no mar,
e todas elas passadas em terra.

Qual é a diferença?
É que eu só digo o que sei,
O que quer dizer
Que falo muito...pouco.
É que eu só sei falar
Do que realmente me aconteceu,
Enquanto “quem”, quem eu não sei,
Diz pouco, mas pode dizer
O que viveu o até como morreu,
E isso depois de morto,
Ou diz muito e nada diz
De suas aventuras no mar,
Porque para que dizer
O que realmente aconteceu
-acontecido está-,
Quando há tanto a se falar
Do que nunca há de acontecer,
Como, por exemplo,
De um mar em que não se nada
De uma terra em que “se tudo”,
De um só que são muitos,
De um só que são muitos,
De um só que são muitos,
De um só que são tantos,
Que dizer quantos são
Não faz a menor diferença,
Já que o barco destroçado está,
A linha destraçada também.



CHICO VIVAS

terça-feira, 1 de março de 2011

DE ALTO A BAIXO





Frágil é só o forte quando se quebra.

Amar é como uma onda forte quando se quebra.
E se é só,
é como um mar inteiro que se quebra,
lançando alto estilhaços de aço
que desenham no ar formas exóticas,
ganham vida e voam como pássaros estranhos.

A saudade é a dor dessa ave
que do alto olha o mar que se quebrou
e por mais desenhos que faça no ar,
não há sombra sua no mar,
porque o mar é frágil,
apesar de toda a onda que tira
de ser devastador,
de deixar saudade.

Mas nem sempre foi assim.
Só assim é agora.
Só é agora porque se quebrou.

Onde os pássaros de estilhaços,
Estilhaços do aço
Que um dia foi mar?

Onde encontrar um pouso,
se sombra jamais hão de encontrar?

No alto de uma montanha forte,
que não sei como fazer se quebrar,
há uma poça de água cristalina,
água do céu caída,
com a mesma humanidade da chuva,
caída ali sem nunca ter chegado ao mar.

Assim digo, mas bem pode ser
que esse mar, frágil,
um dia tenha chegado lá,
lá no alto da montanha firme e forte,
deixando, como saudade eterna,
uma poça de água,
cristais de saudade
que não seca,
ainda que, tão alta,
mais perto do sol esteja.

Essa poça projeta
uma sombra no sol
e se contenta em ter ido tão alto,
sabendo que mais não virá,
como descer ao nível do mar,
do mar que era forte,
e se quebrou;
que ao se quebrar,
mais frágil ainda ficou;
o mesmo mar que lanço
bem alto seus estilhaços de aço
e que em novas aves se virou.

Cabe mesmo uma poça no mar?
Caberá?
Pode uma poça se apossar do mar,
como crê ter se apossado do sol
só por ali uma sombra de nada deixar?

Amar é como uma poça que é maior que o mar.

Saudade é poça no alto da montanha,
sem nada saber do mar.
Mas com a irresistível sensação
de que se de aço o cristal se tornar,
e se depois o cristal se quebrar,
lançando estilhado na poça de aço
e esses pedaços de aço ganharem o ar,
como os pássaros vão voar?


CHICO VIVAS

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

RENTE À CARNE





TOMO NAS MÃOS UMA ACHA DE LENHA.

DA LENHA, COM AS MÃOS,
ARRANCO UMA FARPA,
VERDE.

A LENHA, PORTANTO, A FARPA.

COM CUIDADO, METICULOSO,
ENFIO, AVERMELHANDO-ME,
A FARPA POR BAIXO DA UNHA,
NA RÓSEA CARNE QUE APARECE
COM A UNHA APARADA,
SENSIVELMENTE RASA,
DOLORIDA CARNE.


DE VERMELHO, ARROXEIO-ME,
MAS NÃO PARO
DE INTRODUZIR A FARPA
TIRADA À ACHA DE LENHA
VERDE:
A LENHA, AGORA SANGRENTA FARPA,
JÁ QUASE SUMIDA
SOB A UNHA APARADA.

OLHO A LENHA
E VEJO QUANTAS FARPAS,
E VEJO QUANTOS DEDOS,
EM CADA UM, UMA UNHA,
SOB ELAS, APARADAS,
RÓSEA CARNE,
E AVERMELH0-ME.
E JÁ TENDO EXPERIMENTADO
DA ACHA DA LENHA VERDE
SUA FARPA QUE ME SANGROU,
PASSO IMEDIATO
PARA A ROXA COR,
MESMO QUE SOB A UNHA
SÓ HAJA AINDA UNICAMENTE
UMA FARPA
TIRADA À ACHA
DA LENHA VERDE.

QUE QUERO EU COM ISSO?

AFINAL, DA ÁRVORE
DA QUAL ESTA ACHA VEIO,
VIRÁ MUITO MAIS LENHA
PARA SE PÔR NESSA FOGUEIRA
QUE SE ESCONDE SOB MINHA UNHA?

GUARDAREI EM MIM QUANTAS FLORESTAS?

E QUANDO NÃO HOUVER
MAIS NENHUMA UNHA,
NEM MESMO AS DOS PÉS,
ONDE ENFIAREI AS FARPAS?
AS ACHAS?
AS LENHAS?
AS ÁRVORES?
AS FLORESTAS DESTE MUNDO
QUE APESAR DE DEVASTADO,
PRESERVA AINDA TANTAS FARPAS?



CHICO VIVAS

sábado, 1 de janeiro de 2011

BÊ A BÁ DO A B C




Quem me fala não me soletra.
O que me diz eu não escuto.
Se falo, fica atento,
Se soletro, acompanha-me lento.
Põe a mão sobre os olhos e emudece
e aquela lágrima que corre
por um canto, esquiva,
é como um grito que sai
e do qual não se entende o que diz
porque gritos só doem
e a dor só se compreende
de olhos fechados, boca aberta
e as mãos nos ouvidos
para não chorar.


Se ponho a mão sobre os olhos,
apenas cego-me,
e não dói em mim
e nem corre ligeira
qualquer água em gotas.
Falo com a boca o que quiser,
chamo de dor ao que ela é
ou invento sons que não distinguem
o sofrimento do prazer.
E se levo aos ouvidos, espalmadas,
as mãos que aos olhos já foi,
apenas ensurdeço-me,
e ouço só longo o grito dado
de uma dor que soa distante,
e que logo, liquefeita, se desfaz.


Já se falo, conto todas as letras,
as letras quantas eu tenha para contar,
conto e reconto sem cálculo,
verto e reverto sem vazão,
encho uma bacia com o que contei
e despejo a água que chorei
num riacho de que não sei
nada:
onde nasce,
aonde vai.
E quando dele precisar
para cobrir meu rosto ou lavá-lo
ou ainda para confundir
uma gota com tanta água,
ou para quando vier a sede
e encher as mãos que levarei
à boca seca como se
cobrisse os lábios como aquele
que faz assim para nada ver:
o que farei?


Não sei se nessa troca
em que se vedam os olhos para não ouvir,
em que se tapam os ouvidos para não chorar,
o que hei de fazer para beijar?
Talvez levar as mãos à cabeça
e simular, sincero, um desespero.
Um beijo com lábios improváveis
nessa miscelânea de sentidos.
Será ao menos que um abraço
se fará, como de hábito, por um laço
ou esse encontro de cruzados braços
sobre as costas um do outro
é já o beijo tão sonhado,
o beijo não conseguido
com a boca a outra colada?...



CHICO VIVAS

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