sábado, 1 de dezembro de 2012

VERSOS SEM PÉ NEM(NEM)-CABEÇA



FALTOU UMA PERNA A RIMBAUD.
E UMA PERNA A OUTRO POETA FALTOU:
E DAÍ?

SÓ PORQUE OS DOIS FAZEM VERSOS?
(SIM, FAZEM, NO PRESENTE,
POIS SER POETA É AÇÃO
DO INDICATIVO DE AGORA,
SEM TEMPO ATRÁS,
EMBORA LÁ POSSA ESTAR A RIMA
E MESMO A RIMA QUE NÃO HÁ,
SEM TEMPO ADIANTE,
MESMO QUE SE PENSE EM VERSOS INFINITOS
E SE PENSE SEMPRE NO INFINITIVO DOS VERBOS,
PARA FRENTE, JAMAIS PARA TRÁS):
E DAÍ?

A QUANTOS (OUTROS) FALTA UMA PERNA
E JAMAIS POEMA FIZERAM?!
LOGO,
INTROMETENDO A RAZÃO AQUI,
NÃO DEVE SER UMA PERNA A MENOS
A CAUSA DO VERSEJAR:
MAS QUE FAZ ESSE LOGO LOGO AQUI,
TÃO CONCLUSIVO, RACIONAL?
PORQUE se PODE DIZER,
SIM, PODE-SE DIZER,
QUE A PERNA QUE A UM FALTOU
E QUE FALTOU A OUTRO TAMBÉM
FORAM A CAUSA DOS SEUS VERSOS:
MESMO QUE ISSO SEJA MENTIRA.

QUAL, AFINAL, LOGO AQUI,
A IMPORTÂNCIA DE UMA VERDADE,
TÃO FINAL?

E SE SÓ UM A PERNA PERDESSE
E MAIS A NENHUM POETA ELA FALTASSE,
COMO OS DOIS SE COMPARARIA(M)?
ORA, ARRANCANDO AO OUTRO A PERNA
OU COLANDO-A AO QUE A PERDERA.
CORTARÍAMOS DE UM UM DEDO DA MÃO
E NA DO OUTRO OUTRO DEDO TAMBÉM
E ASSIM PODERÍAMOS DIZER
QUE A ESTE FALTOU UM DEDO DA MÃO
E ÀQUELE DA MÃO UM DEDO FALTOU.
E DIRÍAMOS:
E DAÍ?
E PODERÍAMOS DIZER:
TANTO FAZ!
E CHEGARÍAMOS ENTÃO A DIZER:
SÃO OS DEDOS QUE FALTAM NAS MÃOS
QUE OS FAZEM OS POETAS QUE SÃO.

E SE AO INVÉS DO DEDO DA MÃO,
A UM A MÃO INTEIRA CORTÁSSEMOS
E DO OUTRO MAIS DO QUE UM DEDO,
CORTÁSSEMOS-LHE TODA A MÃO?
E SE DE UM TIVÉSSEMOS CORTADO
DO SEU BRAÇO DIREITO TODA A MÃO
E PARA SER PERFEITA A COMPARAÇÃO,
AMPUTÁSSEMOS DO OUTRO SUA MÃO,
COMO ESSES DOIS POETAS
ESCREVERIAM SEUS VERSOS?

TALVEZ SÓ OS PENSASSEM.

QUEM SABE DISTASSEM-NOS.

PODE SER QUE SÓ OS "CONTASSEM"
(ONDE: NOS DEDOS DA MÃO?),
FAZENDO DA BOCA AS MÃOS ARRANCADAS.

E SE SÓ MENDIGASSEM,
EXIBINDO EM PÚBLICO SUAS MANETAS,
CONDOENDO OS PASSANTES COM SUAS DESDITAS,
ASSUSTANDO OS PEQUENOS COM SEUS HORRORES?!

E SE JAMAIS UM VERSO TECESSEM,
E UMA RIMA JAMAIS ENCONTRASSEM,
E EM BRANCO FICASSEM SEUS VERSOS,
E DA MEMÓRIA SE LHES APAGASSEM,
MESMO O SENTIDO DA POESIA?

E SE,
E SE,
E SE?

COM ISSO NÃO SE FAZ UMA ANTOLOGIA
("E SE" FIZESSE?)

"E SE" SÓ FAZ AQUI
CONDICIONAR O TEMPO DE AGORA
AOS DADOS QUE SÓ AMANHÃ SERÃO JOGADOS:
E ISSO É LONGE DEMAIS PARA OS VERSOS DE HOJE
QUE FALAM ("E SE" NÃO FALAM?)
DAS PERNAS QUE ONTEM FALTARAM
(A RIMBAUD, A PAES)
OU DAS MÃOS QUE ME FALTAM.

E SE?

CHICO VIVAS

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

O PREGO QUE FALTAVA



Um velho cândido de cabelos brancos
martela um prego de cabeça dura.
Bate o velho com o martelo.
Bate o martelo no prego duro.

Por mais que bate o velho,
seu rosto é sempre cândido
e seu cabeço é sempre branco.

Por mais que bata o martelo,
pouco se sabe de sua vida-velha.
Do prego, sabe-se que entra,
perfurando a madeira dura,
a parede dura,
e quantas mais superfícies
se apresentem a sua ponta fina,
levando golpes certeiros
de um martelo às vezes incerto,
dadas as mãos do velho,
com a força de um velho cândido,
uma força que, nada bíblica,
não está nos cabelos brancos.

O que faz o velho com esse prego?
Nada.

A cada dia que passa,
como um calendário rudimentar,
como uma ampulheta que lhe martela
a cabeça o tempo todo,
vai pregando:
na parede,
na madeira,
cada dia com um prego.

Prefere assim o cândido homem,
o homem que preferia não ter
esses seus cabelos brancos.
É que os tantos dias ele viveu
com cabeça negra e rosto cândido
já se lhe despregaram da memória,
e quando, agora,
se olho no espelho,
nem a fantasia lhe pinta o rosto,
um rosto cândido, cabelos brancos.

A cada dia, um prego.

Prega cada dia com um.

Cada prego é um dia.

Conta cada prego como um.

Mas seus golpes de martelo
nunca vão até o fim,
não enterram todo o dia,
deixa do prego a cabeça de fora,
deixa que do dia
uma lembrança aflore.

Com todos esses pregos salientes,
como ganchos sem nada sustentarem,
a não ser a saudade de um dia,
a certeza de um prego como guia
da memória em que não mais se fia.

Usa-os para pendurar
os retratos de uma vida.

Em algum lugar o rosto cândido
é cingido por moldura negra.
Cabelos alinhados que se foram,
dias ordenados que se foram,
pregos esgotados que se vão.

Força no martelo que se vai.

O rosto ainda é cândido,
quando lhe pregam o caixão.



CHICO VIVAS

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

QUE SACO ESSE VAZIO!


Afundei a mão num saco
E encontrei o saco vazio.

Todo vazio é como um saco
Que mão alguma alcança.

Fiz desse vazio um saco
E nele me afundei.

Lá não havia um saco,
Mas uma mão vazia
Que procurava por um saco,
E que achou-o nesse vazio,
E que fechou-o.

Eu, lá dentro, naquele vazio,
Onde quer que pusesse a mão,
Nenhuma outra encontrava.

Acomodei-me ao saco,
E tanto que já agora
Sinto-me de sua matéria um igual,
Podendo ser um saco em que
Se uma mão afundar,
Só irá encontrar um vazio,
Podendo ainda ser o próprio vazio
Em que se uma mão se aventurar,
Não encontrará nem um saco.

Saco e vazio:
Por que, me pergunto,
Uma mão vazia não me leva,
Tomando-me por um saco vazio?

Acomodei-me à espera,
E o que alcancei foi só
Desesperanças a mancheias.
Sorte delas estarem assim!

Porque esperança é como meter a mão
Num grande saco vazio
E esperar por outra mão,
Uma dessas que cheias estão.

Temo apenas que querendo depor
Por um instante o desespero da mão,
Elas tomem o primeiro saco
E o encha com aquilo
Que agora faz a mão vazia.

Eu, portanto,
Tão vazio até então,
Ficarei cheio até a boca
Com a desesperança daquelas mãos,
E assim serei maior como saco
E infinito como vazio.

CHICO VIVAS

sábado, 1 de setembro de 2012

LEI DO SILÊNCIO



Os risos da madrugada,
As buzinas escancaradas,
Na face do meu verso insone
Concertam-se em desarmonia
Para me manter acordado,
Olhos atentos a todos os ruídos,
Procurando-os em meio à noite
Que muito já vai além da meia,
Cravando-os na escuridão
Como se acertasse direto no alvo,
Sem calcular da aurora seu preciso lugar.

A esmo, eu mesmo, sem rumo,
De ouvidos aguçados para sombras reais
Que passam, passeiam e voltam
Sem trazerem junto um corpo,
Como um corpo que passa,
Como um corpo que passeia,
Como um corpo que dá voltas
Sem uma sombra a seu lado
Ou lhe adiantando os passos,
Ou mesmo atrasada,
Atada a seus pés.

É só mais um dia à noite!
É só mais uma noite tardia!
É só mais um felino esgueirando-se
Rente aos muros, olhando-o
Bem alto,
Experimentando com os olhos
O pulo que o elevará,
Mas, covarde, não sai do lugar,
E ainda caminha,
Estreitando-se à parede,
E só quando dá de cara
Com um buraco naquele muro,
Arrisca-se a atravessar,
Encolhendo-te aqui,
Para alongar-se acolá.

Porém, do outro lado
É igual ao lado de cá,
Com muros altos que ele olhará,
Com pernas curtas que arranjará
No ponto certo para o pulo enfim dar,
E termina ficando onde está,
Insinuando-se, colado à cerca,
Até novo buraco encontrar,
Passando assim para o lado de lá
Que é semelhante a este lado de cá.

Nisso, o sol se achega
Como se atravessasse um buraco,
Saindo do escuro de algum lugar
Para o claro do lado de cá,
Revelando, assim, com clareza,
Que o gato medroso a passear,
Ameaçando o muro subir sem nunca pular,
É um homem, só isso, querendo saltar,
Olhando os riscos que há
Nos risos da madrugada,
Com buzinas explodindo em sua face,
Escancarando o verso que é
Disto aqui um outro lugar,
Deste cá o lado de lá,
Como uma moeda de única face,
Com cara, mesmo se rei, sem coroa, mesmo se rainha,
Com verso sem rima,
Como de uma noite não dormida
Da qual há-de despertar,
Espreguiçando-se,
Sorrindo ao sol,
Olhos ainda noturnos,
Fingindo que tudo está no lugar,
Enganando-se de que está aqui,
Quando ainda está do lado de lá,
Ou crendo-se ainda por lá,
Quando sequer saiu do próprio lugar.

À janela, aos risos.
À madrugada, aos olhos.
À janela, ao verso.
À buzina, ao silêncio.
À face...insone.

CHICO VIVAS

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

RECEITA CASEIRA COM CLARA DE OVOS



Teu corpo, almofadas confusas

Para minha cabeça negra, olhos antigos,

Afunda sob o peso da carne nova

E sobe...como maré que avança.

À sua iminente quebra, nas pedras,

Faço-me rocha, duro na queda,

Mantenho-me firme, confiante em mim,

Mas não descruzo os dedos.

Deixo-me, pedra, coração mole, lavar,

Só não me deixo, água, levar.

Fico encharcado,

E desejo um charco.

Porém, só me ofereces,

Em lugar da lama desejada,

Água benta

Já suja dos teus améns...

É isso! Que assim seja!

Um dia, farás, confuso,

Dessas tuas almofadas corpos tecidos

Com fantasia quadrada,

E nelas,

Ao custo de um recheio sem doce,

Deitarás como minha tua própria cabeça,

Num contorcionismo sem graça,

Porque se dobra sobre si mesmo

E não se desdobra sobre um outro:

Corpo.

Porque, em vez de mostrares

Teu corpo entrando em outra fantasia,

Só exibirás almofadas afundadas,

Como um baixo-relevo de cabeças

Que, um dia, em teu corpo “pensaram”,

Pensando que assim o curvavas,

Pensando que assim o curtias

Como couro bem trabalhado

Com o qual, se não se fazem almofadas

(ainda que isso seja possível),

Se constroem belas fantasias,

Mesmo que em contorções costumadas.

Isso tudo sem pesar os prós,

Contra todos os contrários

E a favor, tão-só, do vento leste

Que sai da tua boca em suspiros,

Desejando

(que água na boca, meu Deus!)

Que suspiros não saiam:

Entrem-te goela adentro,

Entretendo tua língua

Que ora vai ao céu

Arrancar fragmentos de suspiros,

E ora

(que diabos!)

Acabou-se o que era doce.

E tais suspiros mordidos

Revelam que não têm nada por dentro,

Nada a dizer, todos bem aerados

Como se fossem uns cabeças-de-vento.

Tão nada que, se se os morder,

Morde-se neve não gelada,

Gélidas claras batidas com a mão,

Porque eletrodomésticos

Até podem ser boas batedeiras,

Mas fazem tudo muito rapidinho,

Enquanto que com a mão: não!

Mesmo que disso tudo ela saia

Como se se despedisse de um trabalho sujo,

Embora sem marcas indeléveis,

Até mesmo fugazes essas marcas

Na lembrança das fantasias.

Então, que se batam as claras,

Às claras ou num agradável escuro,

Sem toque-toque na porta,

Com suave gostinho de limão,

Em raspas,

Aroma verde de cascas rapadas,

Como almofadas sem pelos,

Como peitos bem recheados,

Tanto de doces suspiros

Quanto de salgadas águas

Que dos olhos se ejetaram

E vieram se intrometer no meio

Destes versos sem nenhum sabor,

Insípidos,

Insistentemente cúpidos nas entrelinhas,

Ainda que andem tão na linha

Que parecem um trem danado de bom

Essas almofadas vagas,

Esses vagões acolchoados

De um trem-bala

Em que não se encontram suspiros

E nem mesmo

(que trem é esse?!)

Uma balinha que rola na boca.

E como nas longas viagens,

Mesmo nas que, de relógio, durem tão pouco,

Ainda que, na memória, infinitas jornadas,

Precisa-se em alguma hora

Se apoiar a cabeça num lugar macio.

Tendo almofada à mão,

Hei de preferir teu corpo a meus pés.

E piso.

E teto.

E entre o mais baixo de nós,

Que nem precisa ser eu,

E o mais alto de todos,

Há um recheio de desejos.

Se te piso, sou ex-mago,

Já sem poderes de varão,

Com varinha alquebrada.

Se te teto, vou às alturas,

Desequilibrado como eu só,

Como criança que se ocupa

Em apoiar uma cadeira sobre a outra,

E são muitos os assentos,

Como é única a almofada,

Só para alcançar, no alto,

Ainda bem abaixo do teto,

Um pode de suspiros:

Que não alcançará

Porque as cadeiras caem em cadeia,

Deixando(-me?) com um pote de mágoas nas mãos.

E, então, no chão já,

Lavo as mãos

Para sujá-las outra vez

Batendo claras calmamente,

Sem pressa para fazer neve,

Vendo aumentar o calor,

Ansioso pela primavera.

Verão!

Só não veem porque não mostro,

Para fingir que ainda babo por almofadas.

E eu só suspiro!...

CHICO VIVAS

domingo, 1 de julho de 2012

SOLUÇÃO SALINA PARA UM DOCE PROBLEMA



Dispensado um sinal sonoro

Ou mesmo, na porta, um discreto arranhão,

Como um toque sutil,

Embora não abra mão de te tocar,

De te arranhar no verso,

Sem te magoar, de perto, o peito,

O que desejo...

É entrar em ti sem bater,

Sem querer aplausos,

Mas com as palmas abertas,

Inteiras sobre ti.

E para isso acontecer, sei,

Terei de sair de mim mesmo.

Não! Não quero me despedir:

O que desejo é, a meu ver,

Entrando em ti sem bater,

Que sintas que estou fora de mim.

Isso tu só saberás,

Porque “saberá a” dentro de ti,

Um gosto que eu, então fora de mim,

Só sinto ao encostar a língua

No que em ti está por fora e,

Como se mais ainda pudesse,

Entro com a língua,

Falando-te (porque falo),

Nesse silêncio sem técnica concertada,

Em ti mesmo que, então,

Agora é que sais,

Sais te ti,

Sais de banho,

Como se chegando de um beco sem saída,

Sem saída de banho,

Com gosto de sais,

Fazendo-me sentir o sabor

De me intrometer em teus acertos,

Mesmo que, oculto (isso),

Tão distante deste mundo,

Só de ti escute longes gemidos

Que ecoam na minha boca,

Formando uma cadeia de sons

Em que nos prendem os abraços.

E jogamos fora a chave,

E isso quase com chave-de-braço,

Imobilizando um ao outro.

Enquanto em nós o movimento

Persiste sem comando

Do coração que sai...da boca,

Do corpo que não quer...de cima

Aos pés que, embaixo, pisam fundo,

Acelerando, à superfície,

Tanto(s) toques como arranhões

Que tanto em ti prometi não dar.

Mas, como eram todos retóricos,

Dou-te versos

E me deito de lado.

E, com eles, no peito,

Toques de campanhia

E arranhões com unhas infectas

Para assim te transmitir

O desejo de não mais sair,

Não sei se de si, pois isso

É a sanha para assanhados,

O calor ideal para os assados,

O banho morno para os asseados,

E a senha para se entrar,

Inoculando-me, ao mesmo tempo,

Embora essa noção, neste espaço,

Não faça qualquer sentido,

Enquanto tocamos com arranhões

O desejo de não mais sairmos:

(eu de mim em ti?

eu de ti em ti?).

E não porque não gostei

De em ti ter ficado sem bater,

E sim porque agora

Sair de mim é deixar

De em ti entrar.

E nisso...nem quero pensar.

CHICO VIVAS

sexta-feira, 1 de junho de 2012

A LOUCURA NA GAIOLA




Engano a gaiola

Com um pássaro fingido

E ela se abre

Como se com boca gulosa

Quisesse capturar a presa,

Engoli-la por inteiro.

No lugar da ave, há palavra:

Uma emplumada, canora.

Do corpo da ave enganada

Retiro uma pena,

E ela canta –

Não a pena, claro,

Que, aliás, é clara e é escura,

Mas a própria ave que

Por causa das plumas

É igual às penas,

Escura e ave clara –,

Mas logo ela silencia,

A tal ave cantora.

Com a pena, há palavra,

E no lugar da pena, na ave,

Arrancada,

Uma palavra-penso,

Sem cogitar de cura,

E ela cala.

Com a palavra,

Saída à pena,

A duras aves,

Suaves plumas,

Escrevo a canção

Para esse pássaro ludibriado.

Penduro-a diante de seus olhos,

Presa às grades

Da gaiola-bocarra.

E ela, a ave, sem dó,

Sem piedade de si,

Porque não morde as penas,

Canta,

Canora,

Cantora,

A canção que lhe fiz.

E canta como se,

E entoa, como não?,

A falta da pena

Da qual não mais se lembra,

Mais notas eu lhe desse,

Cantaria alto, baixo;

Cant’alto, contrabaixo,

Contralto, soprano,

Espantando as minhas penas:

Ave emplumada, cheia de mim.

Se me arrancarem um dó,

Sinto essa falta no peito

Como se dali, a frio,

Me tirassem uma pluma,

Acrescentando-me outra pena.

Outra apenas,

Em meio a tanto peito.

E, ao contrário da ave,

Que é Eva,

Quanto mais desplumado,

Ou mais desemplumado, quanto?,

Não canto;

Silencio,

Como se agora soubesse

Que fora enganado,

Tomando por ave a palavra,

Tomando por Eva o contrário,

Tomando a mulher por homem,

Bebendo o homem com colher,

Aos sorvos sonoros,

Impolido,

Ao contrário da ave que se sacia,

Silenciosa,

Num largo rio de água boa

Ou num pequeno cantil

Preso a um canto da gaiola

Em que canta,

Ainda que mais uma pena

Se lhe arranque sem freio

E só uma me reste agora.

E se esta também se for,

Tirada por mão qualquer,

Ficará a ave sem dó

Ou, diferentemente do peito,

É um homem ou será mulher?

Sou eu ou será melhor?

Estranho esse pássaro canoro,

De cá para lá na sua gaiola,

Ostentando seu canto

Com uma única pena

Ainda presa a seu corpo,

Exposto peito

De um jeito de fazer dó.

Eu, todo emplumado,

Reposto medo,

Eu cheio de dós.

Dou-te as minhas penas, ave!

Dou-te meu peito, contrário!

Dou-te meu silêncio, Eva!

Dou-te meu canto, mulher!

Mas sempre em silêncio...

Homem que sou, contrário

A que se beba fazendo barulho,

A que se ame com freios,

Faço da ave um verso

E invento a própria mulher.

Faço do homem a face

E a cubro com plumas,

Sem faltar uma sequer.

Penas claras e escuros dós

Que fazem do rosto do homem

O mesmo que é das penas.

No meu lugar, as aves.

O meu contrário, Adão.

No meu Éden, a palavra.

Na minha gaiola inventada

Só aves amenas: o contrário da solidão.


CHICO VIVAS

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