O olhar é puro, mas a mancha é clara.
O olho tão claro trai, claramente, a mancha.
A mancha não está no olho, claro,
Olho que, ainda assim, enxerga manchas
Mesmo onde manchas não há,
Mesmo sendo claro,
Mesmo sendo puro,
Por puro capricho do olhar.
A mancha está nos olhos
De quem olha para tão claros olhos.
Mas, como,
Se a mancha não está nos olhos
Claros, puros?
É que um olhar assim,
Ainda que no escuro,
Não disfarça a mancha
Que ali se reflete
Como se os olhos fossem
Um espelho calculado,
Fracionado em tantos pedaços,
Pelo corpo espalhados
E sempre todos voltados
Para aqueles olhos claros,
Reproduzindo ali,
Aos olhos de quem os vê,
As manchas que há –
Menos no olhar,
Tão puro, claro!
Quando os olhos se fecham,
Quem os olhava não vê mancha,
Mas quem era visto,
De olhos claros,
Talvez enxergue,
Se não uma mancha,
Pelo menos um espelho;
Alguns cacos, outros pedaços,
E flagre em um deles
A sombra escura de uma mancha clara:
Puro capricho do espelho quebrado.
E ao, novamente, abrir os olhos,
A mancha que viu
Se refletirá agora no olhar:
Ou será que este, claro,
Puro permanecerá?
Se a mancha assomar a olhos vistos,
Assombrará?
Ou, claro, será vista apenas
Como uma nuvem passando
Ao largo do céu azul,
Como se os olhos fossem
Um céu todo espelhado,
E a mancha passageira,
Uma nuvem costumeira?
E se a mancha tomar os olhos,
E quem os via tão puros
(claro, porque nada mais via
do que olhos tão claros)
Vir agora apenas um escuro
Tão grande, claro, que toma os olhos,
Como se nuvens se juntassem
E tomassem, de assalto, o céu azul,
Como um espelho que o tempo,
Sem polidez,
Destruiu,
Destruindo sua face tão clara,
Pontuando-o com pausa
De manchas escuras, claro:
Se assim for, o que será?
O que será do olhar tão puro?
O que será da mancha, claro,
Tão escura desse olhar tão calmo?
Digo eu que era,
Essa mancha escuro-clara,
Um borrão sobre meu peito puro,
Bem do lado do coração tão calmo,
Vinda de uma pena encharcada
De tanta tinta que,
Como nuvem escura, claro,
Em chuva se desdobrou.
Se com leite arranco a mancha,
Em que peito sorvo esse leite?
Se com essa mancha engano a todos
De que tenho esses olhos tão claros,
Se olho fixamente o céu bem puro
Para refletir sobre um claro que não é meu,
Se claro, escuro, puro e calmo,
Se escuro, por que não puro?
Se calmo, por que não pulo?
Se claro, por que não-mancha?
Se mancha,
Se manche,
Se avião,
Se céu,
Se seu,
Se o tolo é mais esperto do que eu,
Há de já ter percebido,
Desde a primeira mancha aqui,
Que sou irreversivelmente escuro,
E nem sequer cogitou me olhar,
Por puro capricho
Ou porque sabia
Que a mancha que tinha, escura,
Era, claro, só uma pena,
Apenas,
Para escrever,
Com letras escuras...
Por puro capricho.
CHICO VIVAS