A palavra cruel
Já passou por tantas bocas
- malditas bocas! -,
Que o hábito fê-la monja
E tornou-a uma palavra
Sem qualquer maldade.
Agora, ela sai das bocas malditas
Já toda aparada,
Arredondada,
Sem deixar mácula,
Nem uma ferida na língua ferina,
Sem magoar as gengivas,
Nem sangue escorrer ali.
E quando chega ao seu destino
- destino cruel agora o seu -,
Já não fere os olhos
Com seu brilho pontiagudo,
Já não entorna no ouvido
Todo o veneno pretendido,
Já não se cola à pele,
Já não se fixa na alma
Com um novo cravo enferrujado.
Tanto faz à palavra,
Pelo tanto que tem feito:
A boca tanto faz com a palavra,
Que a palavra
- qualquer uma –
É só mesmo uma palavra.
E se é cruel o que dizem dela,
Isso é como etiqueta de preço
Em tempo de inflação:
Muda a todo instante,
Silenciosamente,
E o que então era isso,
Logo aquilo será;
Cruel vira macio
E a boca se conformará
Com uma forma qualquer que se lhe dê.
Não cospe farpas,
Mas engole sapos;
E se mastiga abelhas selvagens,
Delicia-se com o mel.
É por isso que me calo sempre:
Para dar à palavra que nasce
Dos meus lábios cerrados
- como se fossem as pernas abertas –
Não a luz que se espera da vida,
Mas só o escuro
A animá-las de trevas:
E a treva, que palavra é?
CHICO VIVAS