sexta-feira, 1 de junho de 2012

A LOUCURA NA GAIOLA




Engano a gaiola

Com um pássaro fingido

E ela se abre

Como se com boca gulosa

Quisesse capturar a presa,

Engoli-la por inteiro.

No lugar da ave, há palavra:

Uma emplumada, canora.

Do corpo da ave enganada

Retiro uma pena,

E ela canta –

Não a pena, claro,

Que, aliás, é clara e é escura,

Mas a própria ave que

Por causa das plumas

É igual às penas,

Escura e ave clara –,

Mas logo ela silencia,

A tal ave cantora.

Com a pena, há palavra,

E no lugar da pena, na ave,

Arrancada,

Uma palavra-penso,

Sem cogitar de cura,

E ela cala.

Com a palavra,

Saída à pena,

A duras aves,

Suaves plumas,

Escrevo a canção

Para esse pássaro ludibriado.

Penduro-a diante de seus olhos,

Presa às grades

Da gaiola-bocarra.

E ela, a ave, sem dó,

Sem piedade de si,

Porque não morde as penas,

Canta,

Canora,

Cantora,

A canção que lhe fiz.

E canta como se,

E entoa, como não?,

A falta da pena

Da qual não mais se lembra,

Mais notas eu lhe desse,

Cantaria alto, baixo;

Cant’alto, contrabaixo,

Contralto, soprano,

Espantando as minhas penas:

Ave emplumada, cheia de mim.

Se me arrancarem um dó,

Sinto essa falta no peito

Como se dali, a frio,

Me tirassem uma pluma,

Acrescentando-me outra pena.

Outra apenas,

Em meio a tanto peito.

E, ao contrário da ave,

Que é Eva,

Quanto mais desplumado,

Ou mais desemplumado, quanto?,

Não canto;

Silencio,

Como se agora soubesse

Que fora enganado,

Tomando por ave a palavra,

Tomando por Eva o contrário,

Tomando a mulher por homem,

Bebendo o homem com colher,

Aos sorvos sonoros,

Impolido,

Ao contrário da ave que se sacia,

Silenciosa,

Num largo rio de água boa

Ou num pequeno cantil

Preso a um canto da gaiola

Em que canta,

Ainda que mais uma pena

Se lhe arranque sem freio

E só uma me reste agora.

E se esta também se for,

Tirada por mão qualquer,

Ficará a ave sem dó

Ou, diferentemente do peito,

É um homem ou será mulher?

Sou eu ou será melhor?

Estranho esse pássaro canoro,

De cá para lá na sua gaiola,

Ostentando seu canto

Com uma única pena

Ainda presa a seu corpo,

Exposto peito

De um jeito de fazer dó.

Eu, todo emplumado,

Reposto medo,

Eu cheio de dós.

Dou-te as minhas penas, ave!

Dou-te meu peito, contrário!

Dou-te meu silêncio, Eva!

Dou-te meu canto, mulher!

Mas sempre em silêncio...

Homem que sou, contrário

A que se beba fazendo barulho,

A que se ame com freios,

Faço da ave um verso

E invento a própria mulher.

Faço do homem a face

E a cubro com plumas,

Sem faltar uma sequer.

Penas claras e escuros dós

Que fazem do rosto do homem

O mesmo que é das penas.

No meu lugar, as aves.

O meu contrário, Adão.

No meu Éden, a palavra.

Na minha gaiola inventada

Só aves amenas: o contrário da solidão.


CHICO VIVAS

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