quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

DADOS INCOMPLETOS PARA UM JOGO SEM FIM






Doei os dados que me machucavam os dedos
E fiquei com a mão livre para a lição de piano,
Já quase apagadas as marcas do azar,
Já tão cicatrizadas as feridas-consortes.

Da cauda do instrumento desconheço o corpo,
Mas toco-o,
E ele vibra.
Dou-lhe corda,
E meu pescoço aperta.
Toco-lhe no que é branco,
E pressiono seu negro profundo,
E o som me faz relembrar
As salas de jogos mergulhadas na penumbra,
O gosto forte de bebidas tomadas,
Tomadas a bocas alheias:
Porque não bebo.

E rolo, sem tê-lo à mão, os dados nos dedos,
Atiro-os à mesa do imaginário salão:
São de marfim esses dados que doo,
Com pontos marcados em marcado negror:
Se lhes toco o branco, é só um cubo dado;
Se lhes tocar no que lhes vai em preto,
É raso
E nem mesmo meu dedo mais curto
Afoga-se nessa lagoa sem monstro.

Mas, e se eu atirar os dados que tenho,
Ou que imagino ter entre os dedos,
Não sobre a mesa de jogo coberta
Com toalha verde marcada por mãos,
E sim direto no corpo despido
Que não revela as mãos que por ali passaram,
O branco será um som que arrancarei
Ou será um sonho cubista que pintarei?
E o preto,
Será dos dados os pontos
Ou serão alguns pontos marcados no corpo,
Sem que se saiba se por mãos,
E por quais,
Se por pianista de salão
Ou por um jogador contumaz
Que mesmo sem tê-los à mão,
Rola eternamente dados nos dedos?

Doeu deixar de jogar.
Já doía me atirar à mesa de jogo,
À cauda do instrumento de corda,
Ao corpo do piano-bar,
Ao que lhe vai em branco, lacuna
E no que lhe pinta de negro, profundo.

Dói ainda a lembrança nos dedos
Dos dados que deixei de jogar,
Talvez como doa a um pianista
Que tivesse doado seu piano de cauda
Para nunca mais tocar,
Mas que ainda hoje, contumaz,
Ao ver um corpo despido,
Toca.

Um corpo despido é um jogo
-Que sorte!-
De azar.



CHICO VIVAS



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