terça-feira, 1 de abril de 2014

ACARICIADOR



A carícia me doía tanto
Que meu corpo não mudava
Só para não doer quem me acariciava.

Como pode uma ternura desesperar
E não entontecer a cabeça, espantar
Para longe, que os olhos não possam alcançar
Qualquer mais sério pensar
E, ao contrário, concentrar,
A cada toque desse desejo,
Os incômodos de uma tortura
E que é mais ainda torturante
Não pela dor que faz sentir,
Mas por não se viver sem se torturar?

Os afagos que me chegam,
Não me chegam,
E isso é como doendo,
Pedir que doa mais,
Não havendo quem doe:
Eis aí a dor maior.
Ao me chegarem esses afagos,
Ao aportarem em mim,
São como âncoras que desabam
Sobre o fundo do que não sou,
Sobre um abismo que não se vê;
E esse não-solo embaixo d’água
É meu peito enfraquecido
E que mesmo colecionando
Já tantas âncoras enferrujadas,
A cada baque de um barco,
De um pau que vai a pique,
Finca certeiro um peso a mais.
Nessa terra sem peixinhos,
Que tão fundas elas são
Que não têm motivos para decoração;
Tão próximas ao abismo elas estão,
Que vida nenhuma passa por lá.

E o que deveria me agradar de uma mão
E de outra, já são duas,
E de mais mãos ainda -quantas são?-,
De uma multidão de dedos a me buscar,
Só me dói no coração.

E o que me corrói não é a dor,
É só o experimentar como um ardor
Um amargo, um longo travo
Que em outros causa horror,
Fecha-lhes os olhos,
Tira o ritmo de seu respirar.
Dá a sua boca ávida ares de sertão
À espera de uma chuva
Que chega encharcando toda a língua
Que, muda, nada fala,
E se fala, endurece.
Quando livre esse idioma,
Apesar de tanta água rolar,
Só salpica monossílabos.

O que me dói, me tortura,
Me constrange, me afoga,
É só se dor, em intenção,
Me vier, mesmo que de mãos
Que eram mãos das mesmas carícias,
Um beijar não como um beijo,
Um que me castigue como que seja
Um afago
À deriva,
Derivado
De uma alma
Sem correntes,
Sem âncora,
Como um barco,
Como uma vaga,
Solta,
Irrestrita,
Irrequieta,
Barulhenta,
E não de palavras curtas,
Quando a língua se desenrola,
De impropérios,
Neologismos desusados
Que são como do tapa o estampido,
Do chicote a risca certa,
Da opressão a cabeça baixa,
Do sangue a vermelhidão,
Das marcas no pulso, enfim,
Porque é preciso terminar,
As algemas como lembranças
Para um amanhã que vai começar,
Quando mãos afáveis, cuidadosas,
Circundam, em anel, simulando relógio.
E os dedos fechados,
Em meu pulso, como anel,
Como relógio orientado,
Tateiam com cuidado o que crêem
Ser a tatuagem de uma tortura.
E para me recompensarem, tocam-na de leve
E param assim de me acariciar:
Que dor!

Mas a maior de todas
É que não me alegro com escarro na cara
Nem me rejubilo com um abraço:
Que diferença faz?



CHICO VIVAS

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