terça-feira, 1 de dezembro de 2015

ALBA



 

Minha aurora é abrir os olhos
Que não fulgem dourados:
Fogem do sono eterno
De uma noite da qual mal me lembro
De ter começado
E impossível de se suspeitar
Se será acabada
Com um abrir de olhos
Encerrando a madrugada,
Soprando estrelas restantes, resistentes,
Afastando fantasmas,
Seres que se escondem,
Enquanto não brota a aurora.

Só nasceu o dia,
Ainda não fulgiu o sol
Do mesmo lado em que o sol brota
Todos os dias.
É só quando vem a luz,
Um sorriso gestado
Durante toda a noite dormida,
Que o sol nasce,
Saindo, rasgando,
Com dor costumada,
A ponto de não mais se sentir
Esse costume como uma dor.

Os lábios,
Tímidos, às vezes, em viverem
Como se nuvens em volta
Sua luz escurecesse.
Brincalhão, às vezes,
O sol entra e sai dos lábios
Como se hesitasse em nascer,
Quando apenas ele quer
Prolongar esse ante-alvorecer.
Devastados, às vezes,
Os lábios fazem o rosto tremer
Numa erupção que lava
A sonolência que persiste
Num jorro que leva
Para o dia o sorriso.

Meu meio-dia é,
Apesar do sol a pino,
Olhos arregalados aos céus,
Boca escancarada exibindo
Até seu próprio céu,
E nela imperando, corada,
A alegria no traçado dos lábios,
Arredondando-se para o alto
Numa alegria decalcada
Dessas horas cumpridas a fio,
A cada hora, a cada passo,
Passo da hora, hora do dia,
O sol cumprindo sua alegria,
Tão redondo como uma boca
Que come o sol com os olhos
Tão redondos quanto a boca.

Daí em diante, o sol,
Já cumprido metade do dia,
Começa lentamente a cair
E os lábios distendem-se,
Afrouxando o fio enrolado
No contorno feito a compasso
E vai, aos poucos ,voltando
A quase uma linha reta,
Lembrando o horizonte,
Nascente de toda esta história.

E daí para frente,
Ainda alegria:
Ou vão os lábios entortando-se,
Como se quisessem formar
Outro círculo, inferior,
O in-verso da alegria?

Puro engano!
Do sol não há contrário,
Nem mesmo a suposta lua,
Que é só o arbusto celeste
Atrás do qual o sol se satisfaz
De suas necessidades diárias,
Que não convém a sua majestade,
Satisfazer-se assim à luz do dia,
Após tantas horas compridas.
É hora, contudo, da noite
Vir render os passos a fio
Com os quais se adianta a vida
De todos os dias;
Descansar os lábios;
Evitar cãibras na boca;
Puxar pálpebras sobre os olhos
Como mãe preocupada
Com que seu filho frio não sinta nesta vida
E ainda aguarda para vê-lo
Adormecer com sorriso tão lasso,
Despertando o seu,
Próprio sorriso de mãe,
Nos seus lábios próprios
Sem que perceba a geometria
Que se vai aos pouco compondo,
Espantando o eclipse com essa alegria.

 
CHICO VIVAS

domingo, 1 de novembro de 2015

ALUADO





Dama da noite, vagabunda,
Ou como quer que chamem
À lua, à prostituta
Que se vende em quaisquer quartos
De lua,
De “lua” que nem toda prostituta pode ser,
Porque os seus fregueses não aturam
Os caprichos de suas fases,
Reservados às damas,
Mesmo que se vendam,
E talvez porque só negociam
Em quartos caros
A “prata” do dia;
Lua que cresce ou diminui
Em troca do troco miúdo
De um poeta torto,
Escapado do tonel do tempo
Em que estava, envelhecendo, fechado,
Ou dos miúdos ainda menores
De um bêbado que não pode esperar
Que o tempo envelheça,
Ponto ideal de todo prazer de beber,
Para ser o que é,
Ou ainda de um adolescente tardio,
E tardio não porque
Ainda pensa em lua,
Mas por, adolescente,
Não se ter arriscado
Em outras inspirações,
Preferindo a segurança
Das do bêbado trôpego,
Das do poeta lacrado
Num túnel sem saída,
Sem ao menos tirar daí,
Já que não pode daí sair,
Uma inspiração mais “concreta”,
Que construa seus versos
Em forma de lua,
Com a vantagem minguante
De, cheia ela,
Fazer versos redondos;
Quando crescente,
Arredondá-los para o minguante;
Quando assim, aguados versos,
Inventar uma poesia nova,
Para a nova fase da lua
Que, concreta,
Desenhará um vazio.
Mas, nada!

E em zonas empobrecidas,
Em quartos minguados,
A troco de prata miúda,
Ainda se julga feliz essa lua,
Se ao seu nome argentino lhe colam
Uma nova palavra tardia.
Para essa lua:
Nua - roupa puída,
Crua – improvável sabor,
Tua - parente falso.

Quando se dá por satisfeita,
Em sua fase mais plena,
Acha-se inteira dona do pedaço,
Como se o céu fosse só seu,
Sozinha na ausência do sol,
E afaga estrelas ainda iniciantes
Em experimentar caprichos adolescentes,
A ponto de achar um poeta tonto,
Uma bebida nobremente envelhecida,
Ou de achar um bêbado inspirado
Um poeta concreto.

Se lhe chamam (de) “lune”,
Isso lhe acende uma luz
Que logo se perde na cidade
Já carregada...
De lune,
De luz,
De poetas,
De bêbados,
De estrelas,
De iniciantes,
De prostitutas,
De damas.

Se lhe chamam (de) “moon”,
De um jeito “light”,
“serenade” ao luar,
mas isso não lhe rende, moon,
mão-de-vaca seus miúdos fregueses,
sequer uma serenata.

Podem lhe chamar (de) “luna”.
E pode-se tentar,
E pode-se assim continuar,
Até a língua secar,
Até as línguas secarem,
Até os idiomas morrerem,
Mas tudo isso, isso tudo,
E por demais banal:
“princesa do céu”,
“outro lado do sol”,
“olho que chora sobre o mar”,
“vigilante dos amantes”.
E o amor, logo ele,
De todos o mais comum,
É o que mais falta lhe faz,
Até mais do que os miúdos,
Quando lhe faltam trocados,
Até mais do que os bêbados mudos,
Quando lhe faltam poetas calados,
Até mais do que concretistas redondos,
Quando lhe faltam adolescentes arredios.
E quantos deles já viu passar
Por sua vida,
Por seu quartinho,
Por sua cama,
Por seu corpo,
Por seu coração
(e olha que a grandeza decrescente
é só uma impressão
que pode virar de cabeça para baixo),
Sem nada deixarem,
Senão uns trocados:
Passos, no caso do bêbado;
Senão uns miúdos:
Versos, no caso do poeta;
Senão uma moeda:
Desenho redondamente vazio,
No caso concreto;
Senão um amor iniciante,
No caso do adolescente,
Mas que já nasce tardio.





CHICO VIVAS

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

GOTEJANTE



Os minutos pingaram
Na superfície do meu tempo:
Incerto.
E ali formaram
Repetidos círculos concêntricos.

Meus minutos eram pedras,
Pequenos seixos rolados
Sobre o espelho do meu tempo desperto
E formando repetidas horas
Sem um centro definido,
Embora ao meio-dia
O sol se reparta em raios
(o raio que o parta!)
Caindo diretamente
Sobre meus olhos molhados,
Separando o dia que chegou
Da madrugada tantas vezes fria,
Do mesmo dia que se entrega
À avidez dos instantes famintos
Por novas penumbras a vislumbrar
No horizonte tardio
Da superfície rosa do dia.

Não conto os minutos,
Não conto as pedras,
Não repito as horas,
Não reparto o dia,
Não olho fixamente para o sol
Para que dos meus olhos
Não pinguem gotas
Como se instantes fossem,
Caindo no chão,
Rolando antes pelo rosto:
Que é o espelho
Do meu próprio tempo:
Incerto.

Se para despertar na hora,
O relógio ao lado acerto,
Seu tic-tac repetido
Soa-me como seixos rolados
Caindo eternamente num lago.
E sem que eu veja, imagino,
Os círculos concentrados na água
E me esqueço do tempo
Que o relógio consome.

Insone ainda,
Apesar de tanto contar,
De tantos lanosos animais contar,
Volta-me o som dos minutos,
Como num minueto,
Caindo do céu
Diretamente no mar,
E sem que eu possa escutar,
Imagino o tic-tac,
Tic-tac,
Tic-tac,
Das ondas a marulhar.
E assim mais das minhas horas
Se vão embora.

E tanto foi, que,
Desperto,
O sol já sacrificou as sombras,
Álgidos fantasmas sem lençol
E já segue célere, covarde,
Para sacrificar à realidade
As penumbras tenebrosas,
E em hino de luz louvar
O dia,
As horas,
Meus minutos.

E se então cai
Uma inusitada chuva,
Todo esse meu tempo,
Que nem é tanto assim,
Se esvai,
Aos pingos,
Gotejante,
Correndo pelos cantos,
Acumulando-se em poças,
Como o que,
Dos meus olhos empoçados,
Escorre,
Pelos cantos...
Silenciosamente.


CHICO VIVAS

terça-feira, 1 de setembro de 2015

ILUMINAÇÃO PÚBLICA



Quantas ruas tem o inferno?

Sei só que nelas não há postes
encimados, como todos os postes,
por lâmpadas doces.

Não que sejam ali proibidas,
num reino que se julga escuro,
findo o julgamento final,
em mais um filme de tribunal;
é que, lá, tudo acontece, às claras,
por, “justamente”, ali, ser tudo claro,
e tanto que lâmpada alguma serviria
para algo de novo esclarecer.
Assim, postes seriam só
a vertical arquitetura do enfeite:
e para que enfeitar esse lugar
onde reina a vaidade
e tê-la é o que é
a maior das humildades:


As ruas se cruzam e há
esquinas e vielas,
mas ao contrário do que sugerem
esses nomes misteriosos,
sombrios, escondidos, dissimulados,
são espaços tão iluminados
como as ruas principais
de um reino de vivas vaidades.

E desnecessário seria
que houvesse reentrâncias,
grutas e desvios
onde não há mais do que se fingir,
pois o fingimento viria a ser
a maior de todas as verdades:
e esta,
sem lugar ideal para se esconder,
viria à luz - só por dizer -
e, revelada a farsa,
expulsa do inferno seria.
Que vergonha!
Logo de lá, onde governa a sinceridade,
onde ruas há,
onde lâmpadas não há,
onde há luz,
e luz sempre haverá,
onde para-sempre é seu lugar,
onde nada se acabará,
onde tudo não é nada
comparado à rua maior,
do tamanho da maior palavra
que se puder imaginar
para se contar, de um golpe só,
de um fôlego, sem hesitar
o número de ruas que em mim há!...

Eu, que me sinto tão estranho!
tão estranho ao passar
sob um poste com lâmpada acesa,
porque é tão desnecessário:
maior vaidade não haverá?


CHICO VIVAS

sábado, 1 de agosto de 2015

O HOMEM E WOMAN




A velha mulher sem idade aparente,
rodeada por saias de parcas rendas,
sentada sobre suas carnes fartas
é a mesma mulher tão jovem,
marcada já por idade incerta.

Suas rendas continuam poucas,
sentada em suas carnes parcas.

Que faz o tempo com essa mulher
que ganha tão pouco para se ver
rodeada por rendas bem fartas
em suas largas saias rodadas?
E sua carne enigma é,
ora fartas na mulher sem idade,
ora poucas na jovem aparente.

O que faz tal mulher com seu tempo,
sentada sobre a juventude tão parca,
rodeada de lembranças rendadas,
numa idade de aparência bem farta?

Ela mexe as carnes incertas
em movimentos de saias rodadas;
ela mexe nos bolsos da saia
em busca da renda tão parca.

Lá, a mulher já incerta
não acha o tempo rodado,
apenas uma ou outra idade
escondida entre suas carnes rendadas.

Frita a mulher tão incerta
suas carnes aos olhos do sol,
escurece sua pele escura
e clareia com óleos tão fartos.

Frita a mulher aparente
suas carnes em óleo escuro,
clareando seus olhos ao sol
em contraste com as saias rendadas.

O sol escurece e os óleos se fecham
e a mulher de claros rodeada
sacode suas carnes dobradas
e espanta a idade rendada
do rosto que em olhos escurece.

Remexe ainda, como uma jovem idade,
a mulher de incerta aparência
suas carnes em olhos dobrados,
alisando suas saias tão fartas
sem ter nos bolsos rendas rodadas
e só o troco que o tempo lhe dá
por permanecer sob o sol,
escurecendo a olhos vistos,
avistando idade já farta.

Levanta-se e sacode-se toda
e deixa cair uma renda incerta
de um bolso não de todo aparente
na saia de rendas tão claras,
apesar dos óleos escuros
e dos claros olhos sob os quais
frita sua carne cansada,
sentada nas dobras rodadas
do tempo que ao fim só lhe dá,
como renda,
idade dobrada.

Longe já vai a jovem cansada
que é a mesma mulher aparente.

Logo virá a mulher já dobrada
que é a mesma jovem rodada.

As saias são outras, bem claras;
as dobras, as mesmas, gomadas;
o dia sob o sol aos óleos;
o tempo a cada dia nos olhos.

A carne escura em contraste
com o tempo sob o sol bem claro.
As rendas tão parcas em contraste
com os olhos do dia já fartos.

Mas é preciso viver
com a idade que se tem,
aparentando ser uma velha mulher
ou parecendo uma jovem marcada.

Enquanto houver olhos,
enquanto sol claro houver,
enquanto carnes fartas no óleo,
enquanto rendas não tiver
o bastante para ir cansada,
longe do dia dobrado
e adiar o logo rodado
que faz levantar-se rendada
e pronta, alisando as saias
como se as mãos fossem ferros esquentados,
vincando onde deve ficar,
alisando sem tempo apressado.

As rendas da mulher não aumentam
e ela é a mesma mulher sentada.

As carnes da mulher são dobradas´
e é a mesma carne da mulher rodada
pelo tempo que frita
aos olhos do sol,
dia a dia, sob a idade
sem qualquer saia aparente.


CHICO VIVAS

quarta-feira, 1 de julho de 2015

JARDIM SABIDO DE COR



A rosa avemelhou
e chamou a atenção da abelha
que voou até a rosa
e em torno dela olhou,
olhou sem pausa qualquer,
nem mesmo parou de as asas bater,
enquanto olhava olhava,
sem se dar tempo para inspirar
uma única vírgula sequer.


Foi-se a abelha embora,
sem com a rosa copular,
e se agora um espinho nascer,
de quem esse filho da rosa será?


Veio uma mão em torno da rosa
e não pensou em com ela copular;
queria só arrancá-la ao seu solo,
àquela espera de abelhas sem pausa.
Agarrou-a pelo espinho;
feriu-se;
e tornou-se assim, a mão,
o pai de sangue
do filho da rosa sem mãe.


E a abelha, um dia,
picará o nariz do pai,
deixando-o inchado
e, como a rosa vermelho
e ele ainda quererá, mais velho,
dar cambalhotas, fazer rir
para manter sua natureza original
sob o teto de lona furada
e chão coberto de lama,
cheio de buracos de vida mambembe.
E ninguém irá se lembrar
de um dia lhe atirar
da platéia, sentado em tábuas nuas,
uma rosa sequer.


Mas em meio a tantos buracos,
como estrelas à lona colados,
passará voando uma abelha
procurando a rosa para copular.
Não achando pétalas vermelhas,
seu ferrão em um nariz se cravará
e o nariz que é rubro, postiço,
essa cor perderá:
tornar-se-á pálido como do palhaço
antes do espetáculo começar.



CHICO VIVAS

segunda-feira, 1 de junho de 2015

GÊNERO




 

Vejo tuas garras e não desconfio das unhas,
mas sei que é homem, encontrada fera:
onde um fio, bigode penteado,
onde patas, um toque de animalidade,
onde cauda curta, rabo avantajado,
onde curvas, reta perseverança,
onde retas, pura observância
dos caminhos que se desviam
de uma trilha já costumada
a ponto de trazer em si, riscadas,
pistas dos pés, patas a quatro,
pelo caminho reto
(e se ele curva, retifica a fera)
sem balançar, discreta, a causa
(homem sem rabo preso)
mas ocultando as garras
e só mostrando as unhas esmaltadas
e o bigode tão bem aparado
que dele só aparece,
nesse emaranhado de palavras,
um único fio, viril, comportado,
hirsuto, tratado,
e lá pelas tantas,
depois de toda essa pataquada,
vindo a fera, homem predestinado,
seguindo sua trilha, esse trem-de-fera,
ora vejam lá!
ora, e não se pode ver só
porque quem vem lá,
atravessando o caminho do homem,
deixando-lhe, interceptado, uma fera,
é uma fila de patas atravessando a estrada,
e não apenas quatro essas patas,
e talvez por serem tantas,
ruidosas vêm, com pataquada,
vendo a fera selvagem tornar-se
mansinho homem civilizado,
parando, com olhos que não escondem
a barbárie em vermelho insistente,
para que inocentes passem
todas essas patas em branco,
sem sentirem culpa
por terem parado o destino
de um homem que leva seu rabo adiante,
na cauda dos seus próprios passos,
agarrado à esperança
(nem que para isso tenha, escandaloso,
de esmaltar as unhas, esverdeadas)
de ver seu fio, um bigode basto,
transformar-se em bigode, fio sem laço
com a mais dura realidade.
Passadas as patas,
de novo o homem, novamente a fera
olhando para os lados só para ver
se outra vez terá de parar
ou se desta, agora vai,
vai caminhar com passo de pata,
gingando seu corpo num ritmo fanhoso
de homem reto -um dia curvo,
de fera curva -um dia curvada,
de fantasia quebrada -um dia...
um único dia e já fantasia completa,
consertada,
carente, no entanto, de orquestração adequada
que faça, fera, homem mais rebolado,
sem temor de ter de empenhar,
para garantir a fera que é,
um solitário fio de bigode.


Dança, homem, ao som da fera!
Fica de quatro sobre as patas!
fica sobre duas patas, gozando
toda essa pataquada
(com espasmos fanhosos
que formam uma orquestra afinada)
que insiste em dizer
os nomes próprios com substantivos abstratos,
sendo obrigado uma hora
a parar, civilizado,
para deixar passar, uma fera,
uma fila de sentidos desconcertados
ou umas patas -que isso seja!
Um homem que devore
um homem ou quatro feras,
ainda na mesma estrada
do que não é, levando avante,
ao que é, que nunca chega.

Se me curvo, íntima fera,
à realidade de homem,
retifico o que era errado
e erro assim no acerto,
atraindo a ira do maestro.


Se de quatro, a batuta...
Se de três, a bengala...
Se de dois, tudo muito reto...
Se só eu, um solitário...
Se menos ainda...uma fera.




CHICO VIVAS

sexta-feira, 1 de maio de 2015

FIAT LUX





O excelso homem ascendeu,
Finalmente,
Aos céus.
Mas como chegou de surpresa,
Não havia luz a sua espera.
E assim o homem elevado
Levou, com disfarce, a ponta do dedo
À boca sua que sorria amarelo;
Molhou-a com a ponta da língua,
Acendendo o dedo
E deixando, ali, avermelhada,
A chama de uma palavra náufraga.
Uma dessas da qual não se sabe
como se salvou da água de sua boca,
Num daqueles dias intensos
De tempestade de desejos,
Quando se olha, olha...
E é a boca que responde.

Então, com essa lanterna improvisada,
Foi abrindo caminho nas trevas:
Mas como, não estava no céu?
E que faz ali essa escuridão
Que é a luz dos infernos?


Sem sinalização adequada
Ou encoberta pelas nuvens
Que crescerem desordenadas,
Como mata avançando pelas margens
E devorando a estrada,
Ele errou de caminho.
Supôs que subindo sempre,
Indo para cima sem parar,
Mais cedo ou mais tarde,
Que o tempo aí (e aqui) já não importa,
Era no céu onde desembarcaria,
Já que sempre soube de ouvir falar
Que o inferno, ínfero, é reino de baixo,
E como, então, poderia pensar
Que esse antônimo dos prazeres,
Que não é sinônimo de Antonio dos Prazeres,
Era só uma pista vicinal
Ao sinônimo de tudo aquilo
De que o antônimo é o contrario?
E ainda, que mal pergunte,
Que se pergunte a si,
Não é lá, com mil demônios!,
Em que o fogo é eterno
E as labaredas se elevam tanto:
E como esse homem chegou a tanto?
Por que não tomou - ou roubou,
Que ali diferença não faz -
Uma chama para clarear
Seus passos na trilha escura,
E precisou lamber o dedo
E com água da boca acender seu pavio,
Com o fluido de uma palavra tão rubra
E que com braçadas bem ágeis
Livrou-se de ser engolida,
Como, aliás, tantos dos seus desejos?

Onde fica a saída?, pergunta.
Onde entro para poder sair?, repete.
Onde está o céu que me espera?, insiste.
E não há ninguém para lhe responder.

O homem que subiu tão alto
Chegou ao mais baixo de si,
E não por ter se adiantado
Pelas portas - e portas aí não há - do inferno,
Mas por ter trocado o desejo vivo, rubro,
Pelo simples e cândido olhar;
Por ter-se satisfeito em desejar
E na boca muita água acumular,
Crendo que assim subia
Lentamente os degraus,
E que mais dia menos dia,
Nessa vida de misérias,
Ao céu chegaria.

Mas errou de caminho
E foi no inferno parar.
A bem da verdade, já havia
Bem antes errado de caminho,
Quando ainda nem subia;
Foi desde então que aprendeu
- e não se lembra de quem lhe ensinou -
a acender a ponta do dedo
Com a saliva da ponta da língua,
Eximindo-se de provar
O fogo de outra boca.
E agora, vejam só!,
É só fogo o que há,
Mas nenhuma “boquinha” achará.

Que céus, que nada!
Que inferno! Eis tudo.
E sua técnica, a de querer
Só com os olhos desejar,
Parou de funcionar,
A ponto de sequer conseguir
Aquela chama apagar,
O fogo do dedo aceso na língua,
Vendo tudo naufragar.



CHICO VIVAS

quarta-feira, 1 de abril de 2015

HIPERTROFIA PEITORAL





O TÓRAX APRENDIDO
NAS PRIMEIRAS LIÇÕES DE ANATOMIA
EM PEITO SE TORNOU,
DESENHADO NO PAPEL,
ESCULPIDO NA CANÇÃO,
ENCRAVADO ONDE ESTÁ,
COM A RIMA MAIS FÁCIL QUE HÁ.

TOQUEI-O, UM DIA, ASSIM,
PERCORRENDO-O, PONTO A PONTO,
A PONTO DE QUASE DESCOBRIR
A REAL EXTENSÃO DA LINHA IMAGINÁRIA
QUE O DESENHOU,
E ENCONTREI VÁRIOS (DE) NÓS,
ALGUMAS NAUS ENCALHADAS,
CERTAS VELAS JÁ CORROÍDAS
PELO TEMPO QUE BATE NELAS,
E A LINHA VIROU NOVELO,
E A NOVELA VIROU HISTÓRIA.

TOQUEI-O, NOUTRO DIA QUE ME SOBROU,
ALISANDO-O DE PONTA A PONTA,
E LOGO UM RELEVO APONTA,
LOGO APONTA UMA BAIXADA:
SÃO ALTOS E BAIXOS ESCULPIDOS,
SEM UM PORTO CONSTRUÍDO PARA AS NAUS,
E QUASE QUE DIGO PARA NÓS,
SEM MÃOS ÁGEIS QUE DESFAÇAM
NÃO AS NAUS, SOMENTE OS NÓS.

QUANTOS DIAS AINDA TEREI
PARA PERCORRER, NÃO SEI,
O QUE SE ESCONDE NUM PEITO.

EIS AGORA O ÚLTIMO DIA JÁ,
AQUELE EM QUE TE TOQUEI,
NUMA EXPERIÊNCIA DE CIÊNCIAS,
DURANTE UMA AULA DE ANATOMIA:
IMAGINEI(-ME) PERCORRENDO TEU TÓRAX,
MAS FOI EM TEU PEITO QUE VIAJEI,
NUMA DAQUELAS NAUS QUE VIRÁ
(VIRARÁ?)
NO MEU PRÓPRIO LAGO LOGO MAIS ENCALHAR.
E NÃO ENCONTRARÁ NÓS
(SERÁ QUE NOS ENCONTRARÁ?)

POR QUE SÓ EM MIM?
POR QUE EM TEU PEITO NAU NÃO HÁ?

MOLHO A PONTA DO DEDO NA LÍNGUA,
BANHANDO-A NA SALIVA,
FAZENDO-O BORRACHA À MÃO.
E TENTO AGORA APAGAR O DESENHO,
MAS AINDA HÁ NAUS.
COM GOLPE DE DEDOS DA MÃO ESQUERDA,
TORNADA EM MARTELO VORAZ,
QUERO DESTRUIR TUA FORMA.
E SÓ CONSIGO
NÃO TE ESQUECER JAMAIS.


CHICO VIVAS

domingo, 1 de março de 2015

ISSO (SE) TRATA DE QUÊ?



Trouxe comigo a flauta transversa.
Afônico, afásico, atônito e à toa.
Sem carro, com braços, sem pés: cadê o freio?
Toco louco em volta da toca
E expulso apressado o animal dormindo.
Vejo-o correr pelos campos sem lápide,
Sobre covas fechadas sem cruzes quebradas;
Grama aparada sugerindo paz
Que inspirado, suado, solto,
E, molhado, afino o instrumento
Que vibro afoito
Com a música nova que envolve a nevoa
Que se forma sobre mim,
Acima da minha cabeça,
Que se desmancha sob o céu,
Acima da minha cabeça.

Acima da minha cabeça, tanto resta
Notas persistentes de um eco que destoa
Da repetição diminuindo da última nota,
E percebo, bobo, que não há montanhas ao longe
E giro louco à procura de um longe.
E a vertigem fecha meus olhos escuros.
E sinto estar num mundo diverso.
E ao retornar, em tantas idas e vindas,
Sem nenhum longe encontrar,
Toco o mais distante e o alcanço com a mão.
Dirijo-me ao mais perto e desfaço o sonho.

Percorro minha anatomia nobre
E descubro a geografia dos córregos.
Removo com o dedo curto a ferida nobre
(que por nobreza sempre mantenho silenciosa)
e ao retirá-la, desvendo a profundidade do laço.

Manipulo assim sensações que sobem e descem
E subo e desço nesse estado manual,
E entorno o rio de águas cálidas
(grossas , espessas, esposas sem filhos)
Num dia em que não houve temporal.
E essa surpreendente irrigação
Fertiliza as margens do meu Nilo,
E eu mesmo à sua borda,
Que é a minha própria margem,
Espero, espero...
Que baixem a crista as ondas sonoras
Para plantar nova safra na faixa molhada,
Deixando passar a estação então,
Esperando chegar a outro mais propícia
Para colher o que à mesa com colher
Há-de alimentar a boca murcha,
Exalando um tom sem cor
De uma paleta porosa e suspeita
De uma aquarela à prova d’água
De um quadro contido numa moldura oval,
Como um espelho trabalhado com esmero
Em que o vidro é pintado e não muda
E só a própria moldura reflete interesse
Pelas variações da luz do ambiente calado
Em que reina, absoluto, solitário quadro,
Nesse museu já roubado em seu patrimônio,
Restando apenas essa estranha obra,
Feita com arte por um diabo atento,
Que jurou por Deus um dia terminá-la
E foi para o inferno por não ter cumprido a promessa.

Mas o que se esperava de um diabo?
Que desse ao mundo um momento de suprema beleza?
Logo ele que dá ao mundo a contrapartida do belo
(e que esconde sua própria beleza)
E não porque Deus assim o fez,
Mas só porque o anjo caído -e que se levantou: graças da Deus!-
Não conseguiu a tempo terminar seu trabalho
E passa agora suas horas procurando se divertir,
Começando a fazer o que não pretende jamais terminar.
E, cansado já, nós, com tanto não-acabar,
Rogamos, mãos postas, ao Altíssimo
(com olhos devidamente baixos)
Que nos leve, e suporte por nós,
Pesados como já estamos,
Os quilos a mais nessa carga injusta
E que então possamos plasmar sua galeria de obras perfeitas
Com quadros quadrados e espelho ovais,
Como rios que correm,
Com pés que nunca param
-e nenhum deles se cansa-;
com música que sai diretamente de uma madeira roída
e faz saltar da toca a toque de caixa
fadas e grilos com gritos abafados.

Ah! esse céu que dá aos corpos acidentes aceitos
E distrai os consertos para mantê-los errados,
E acerta com pulso os ponteiros do relógio,
E que chama quando quer
E que cala quando muda de ideia,
Copiando sua volubilidade das nuvens sinceras,
Que finge ter olhos em todos os cantos do mundo
Ter memória de todos os tempos,
Ter presença em todos os sítios,
Ser vigia de todas as almas.

E isso que se diz ser o paraíso conquistado
É um inferno com chamas redobradas
Em que cada palavra tem sílabas exatas,
Cada homem tem uma palavra que chama,
Todo fogo tem seu sinônimo,
Tudo é sempre igual ao seu semelhante.

Que salvação, afinal, é essa
Que dobra os joelhos e afunda a cabeça
Na lama doce do não precisar pensar
E assim pensa
-este foi seu último pensamento-
Que um riso curto é o máximo de prazer,
Quando gozar pode estar em ficar sem palavras
E em até contar que se gozou em palavras.


CHICO VIVAS

domingo, 1 de fevereiro de 2015

SE ARREPENDIMENTO MATASSE...


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Se eu lhe der a mão,
você talvez me dê a sua:
e o que farei com três mãos?
Se eu lhe piscar um olho,
é possível que você sorria:
então vou precisar de uma mão,
porque não saberei o que falar,
e para esconder esse meu não-saber,
também eu vou querer sorrir;
e se com isso, em resposta,
você um olho me piscar,
os meus hão de se desviar,
e meu sorriso se contorcerá
em esgares indefinidos,
e minha mão, a essa altura,
por bolsos esquecidos procurará,
e não os há-de achar;
tentarei, à força, abrir
um falso bolso na roupa sem vincos.
Ponho as mãos na cabeça,
sem decidir o que fazer.

Por que é que fui sorrir?
Por que lhe estendi a mão?
Por que pisquei um olho?
-e deste posso dizer
que, absolutamente, não o pisquei,
foi somente um cisco, uma poeira.
Diante de tal desculpa,
você de novo sorrirá,
desmascarando o meu fingir
e aí, desnudado,
decididamente sem bolsos,
onde essas minhas mãos ocultar?

Cruzarei-as nas costas
e com elas não me preocuparei mais.

Os olhos semicerrados
já por si não são preocupação.

Nisso tudo só lamento
perder de vista seu sorriso,
nem tanto pelos meus olhos pouco abertos,
mas pela sua boca ocupada
por mim,
num beijo.

E assim tão de repente,
como que por encanto,
já sei tudo o que devo fazer.


CHICO VIVAS

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

ILUSÃO DE ÓTICA

 

Os olhos da minha amada
são como janelas debruçadas
sobre um mar,
mediterrâneos.
Entreabertas a um sopro da manhã,
piscam, como se sentindo
invadir por um inimigo
de lanças em punho,
com pontas afiadas em fogo brando,
embora sejam só setas inocentes,
inofensivas, esbraseadas,
mas para uma rosa desfechando
(não setas, não lanças, mas abrindo-se)
e que merece o próprio nome
do que para fogueiras em botão
que um apaixonado reúne
num ramalhete apressado,
apertadas todas as rosas pelo talo,
e o oferta, ramalhete em punho;
e ao livrar-se, sorridente,
desse buquê de rosas em brasa,
quente ficou sua mão,
de tanto apertá-las,
sem se dar conta de que
segurou-as pelos espinhos.

Os olhos da minha amada
abrem-se amplamente
ao dia partido ao meio,
tendo ao fundo dessa hora
o soar das badaladas
de uma dúzia de sinos distantes.
Cegas janelas por tanta luz
desse sol mediterrâneo,
baixam-lhe um toldo, pestanejam,
e encaram o brilho argentino
sobre o mar todo esticado,
quase sem vincos,
lençol sobre leito virgem,
salpicado com renda, bordado,
com espumas discretas que se desfazem
tão rapidamente quanto o dia passa,
pois é já hora dos olhos,
que são janelas de minha amada,
entrefecharem-se, sonolentos,
aos primeiros ouros a enfeitar
as águas calmas do mesmo mar,
anunciando a noite que virá,
trazendo buenos aires, querida.

Ainda róseos, distante aurora;
ainda em fogo, perdida paixão;
ainda raios, rua esquecida;
ainda espinhos cravados na mão.

Mas os olhos resistem em se fechar,
embora o cansaço do dia contado,
a menos no calendário,
insista em trancar as janelas
que agora se debruçam
sobre as vias de estrelas,
escuras estradas de líquidas veredas,
caminho molhado de atalhos absurdos,
sendas luminosas em texturas de seda.

Cerraram-se, enfim,
da minha amada suas janelas.
Toda a casa, sua fachada,
imobilizou-se em palidez.
E eu que esperava
o correr dos astros, ansioso,
para novamente ver debruçados
aqueles olhos sobre o mar,
tive eu mesmo, com meus dedos,
cheios de espinhos coagulados,
de baixar-lhes para sempre,
eternamente para nunca.

Nunca mais lanças em raios!
Nunca mais ouros e negros!
Para sempre esse morrer!

Restam-me, para quê?,
os meus próprios olhos debruçados,
mas estes são apenas
como janelas pintadas
num quadro realista,
despertando a fantasia
dos que olham tal pintura,
imaginando o que se passa
por detrás daqueles olhos.
Eu mesmo, porém,
cujos olhos já sem cor
são como janelas desenhadas,
não vejo mais nada.
E se passarem na minha frente,
carregando um quadro pintado
em que se vêem olhos abertos,
como janelas coloridas,
eu nada imaginaria,
a não ser minha amada,
cujos olhos são um eterno branco
debruçados sobre o nada.


CHICO VIVAS

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