quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

ILUSÃO DE ÓTICA

 

Os olhos da minha amada
são como janelas debruçadas
sobre um mar,
mediterrâneos.
Entreabertas a um sopro da manhã,
piscam, como se sentindo
invadir por um inimigo
de lanças em punho,
com pontas afiadas em fogo brando,
embora sejam só setas inocentes,
inofensivas, esbraseadas,
mas para uma rosa desfechando
(não setas, não lanças, mas abrindo-se)
e que merece o próprio nome
do que para fogueiras em botão
que um apaixonado reúne
num ramalhete apressado,
apertadas todas as rosas pelo talo,
e o oferta, ramalhete em punho;
e ao livrar-se, sorridente,
desse buquê de rosas em brasa,
quente ficou sua mão,
de tanto apertá-las,
sem se dar conta de que
segurou-as pelos espinhos.

Os olhos da minha amada
abrem-se amplamente
ao dia partido ao meio,
tendo ao fundo dessa hora
o soar das badaladas
de uma dúzia de sinos distantes.
Cegas janelas por tanta luz
desse sol mediterrâneo,
baixam-lhe um toldo, pestanejam,
e encaram o brilho argentino
sobre o mar todo esticado,
quase sem vincos,
lençol sobre leito virgem,
salpicado com renda, bordado,
com espumas discretas que se desfazem
tão rapidamente quanto o dia passa,
pois é já hora dos olhos,
que são janelas de minha amada,
entrefecharem-se, sonolentos,
aos primeiros ouros a enfeitar
as águas calmas do mesmo mar,
anunciando a noite que virá,
trazendo buenos aires, querida.

Ainda róseos, distante aurora;
ainda em fogo, perdida paixão;
ainda raios, rua esquecida;
ainda espinhos cravados na mão.

Mas os olhos resistem em se fechar,
embora o cansaço do dia contado,
a menos no calendário,
insista em trancar as janelas
que agora se debruçam
sobre as vias de estrelas,
escuras estradas de líquidas veredas,
caminho molhado de atalhos absurdos,
sendas luminosas em texturas de seda.

Cerraram-se, enfim,
da minha amada suas janelas.
Toda a casa, sua fachada,
imobilizou-se em palidez.
E eu que esperava
o correr dos astros, ansioso,
para novamente ver debruçados
aqueles olhos sobre o mar,
tive eu mesmo, com meus dedos,
cheios de espinhos coagulados,
de baixar-lhes para sempre,
eternamente para nunca.

Nunca mais lanças em raios!
Nunca mais ouros e negros!
Para sempre esse morrer!

Restam-me, para quê?,
os meus próprios olhos debruçados,
mas estes são apenas
como janelas pintadas
num quadro realista,
despertando a fantasia
dos que olham tal pintura,
imaginando o que se passa
por detrás daqueles olhos.
Eu mesmo, porém,
cujos olhos já sem cor
são como janelas desenhadas,
não vejo mais nada.
E se passarem na minha frente,
carregando um quadro pintado
em que se vêem olhos abertos,
como janelas coloridas,
eu nada imaginaria,
a não ser minha amada,
cujos olhos são um eterno branco
debruçados sobre o nada.


CHICO VIVAS

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