domingo, 1 de março de 2015

ISSO (SE) TRATA DE QUÊ?



Trouxe comigo a flauta transversa.
Afônico, afásico, atônito e à toa.
Sem carro, com braços, sem pés: cadê o freio?
Toco louco em volta da toca
E expulso apressado o animal dormindo.
Vejo-o correr pelos campos sem lápide,
Sobre covas fechadas sem cruzes quebradas;
Grama aparada sugerindo paz
Que inspirado, suado, solto,
E, molhado, afino o instrumento
Que vibro afoito
Com a música nova que envolve a nevoa
Que se forma sobre mim,
Acima da minha cabeça,
Que se desmancha sob o céu,
Acima da minha cabeça.

Acima da minha cabeça, tanto resta
Notas persistentes de um eco que destoa
Da repetição diminuindo da última nota,
E percebo, bobo, que não há montanhas ao longe
E giro louco à procura de um longe.
E a vertigem fecha meus olhos escuros.
E sinto estar num mundo diverso.
E ao retornar, em tantas idas e vindas,
Sem nenhum longe encontrar,
Toco o mais distante e o alcanço com a mão.
Dirijo-me ao mais perto e desfaço o sonho.

Percorro minha anatomia nobre
E descubro a geografia dos córregos.
Removo com o dedo curto a ferida nobre
(que por nobreza sempre mantenho silenciosa)
e ao retirá-la, desvendo a profundidade do laço.

Manipulo assim sensações que sobem e descem
E subo e desço nesse estado manual,
E entorno o rio de águas cálidas
(grossas , espessas, esposas sem filhos)
Num dia em que não houve temporal.
E essa surpreendente irrigação
Fertiliza as margens do meu Nilo,
E eu mesmo à sua borda,
Que é a minha própria margem,
Espero, espero...
Que baixem a crista as ondas sonoras
Para plantar nova safra na faixa molhada,
Deixando passar a estação então,
Esperando chegar a outro mais propícia
Para colher o que à mesa com colher
Há-de alimentar a boca murcha,
Exalando um tom sem cor
De uma paleta porosa e suspeita
De uma aquarela à prova d’água
De um quadro contido numa moldura oval,
Como um espelho trabalhado com esmero
Em que o vidro é pintado e não muda
E só a própria moldura reflete interesse
Pelas variações da luz do ambiente calado
Em que reina, absoluto, solitário quadro,
Nesse museu já roubado em seu patrimônio,
Restando apenas essa estranha obra,
Feita com arte por um diabo atento,
Que jurou por Deus um dia terminá-la
E foi para o inferno por não ter cumprido a promessa.

Mas o que se esperava de um diabo?
Que desse ao mundo um momento de suprema beleza?
Logo ele que dá ao mundo a contrapartida do belo
(e que esconde sua própria beleza)
E não porque Deus assim o fez,
Mas só porque o anjo caído -e que se levantou: graças da Deus!-
Não conseguiu a tempo terminar seu trabalho
E passa agora suas horas procurando se divertir,
Começando a fazer o que não pretende jamais terminar.
E, cansado já, nós, com tanto não-acabar,
Rogamos, mãos postas, ao Altíssimo
(com olhos devidamente baixos)
Que nos leve, e suporte por nós,
Pesados como já estamos,
Os quilos a mais nessa carga injusta
E que então possamos plasmar sua galeria de obras perfeitas
Com quadros quadrados e espelho ovais,
Como rios que correm,
Com pés que nunca param
-e nenhum deles se cansa-;
com música que sai diretamente de uma madeira roída
e faz saltar da toca a toque de caixa
fadas e grilos com gritos abafados.

Ah! esse céu que dá aos corpos acidentes aceitos
E distrai os consertos para mantê-los errados,
E acerta com pulso os ponteiros do relógio,
E que chama quando quer
E que cala quando muda de ideia,
Copiando sua volubilidade das nuvens sinceras,
Que finge ter olhos em todos os cantos do mundo
Ter memória de todos os tempos,
Ter presença em todos os sítios,
Ser vigia de todas as almas.

E isso que se diz ser o paraíso conquistado
É um inferno com chamas redobradas
Em que cada palavra tem sílabas exatas,
Cada homem tem uma palavra que chama,
Todo fogo tem seu sinônimo,
Tudo é sempre igual ao seu semelhante.

Que salvação, afinal, é essa
Que dobra os joelhos e afunda a cabeça
Na lama doce do não precisar pensar
E assim pensa
-este foi seu último pensamento-
Que um riso curto é o máximo de prazer,
Quando gozar pode estar em ficar sem palavras
E em até contar que se gozou em palavras.


CHICO VIVAS

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