
A dor do meu flagelo.
A dor e o meu flagelo.
O flagelo da minha dor.
Dor e flagelo: infinito.
Se flagelo e dor: sem fim.
O chicote de couro estreito
em tiras bem cortadas
risca minha carne, atrás.
Dou as costas à dor
e encaro de frente o flagelo:
sem ver meu rosto,
pois não há espelho por perto
e, de longe, vem a dor,
de há muito esse flagelo.
Dou-me dores:
lanço por sobre os ombros
a estreiteza do meu desejo,
atiro-o longe, perto de mim,
seguro firme o chicote...
e lá vai ele,
fazendo zoada na minha carne,
lacerando-a,
um som que não repito
em palavras dolorosas
porque não aprendi a escrever
o sinônimo do meu flagelo.
Antônimo também não sei:
não conheço o contrário da dor
nem o verso do flagelo;
conheço só o couro estriado,
já marcado, escurecido,
de tanto minha carne buscar;
e esta, estriada,
ganha desenho singular:
longas retas cruzando-se
em xadrez irregular
em que dama caberia,
e um rei talvez.
Mas tudo isso é o interlúdio
entre a última visita do chicote
e esta que aqui vai:
Ah!...já foi!
Não posso saber, assim,
sem espelho ter por trás,
e sem olhos para meu verso ver,
o desenho que registro
na carne, nas costas, na dor.
Se um braço se cansa, outro.
Se outro se cansa, outro ainda.
Afinal, quantos abraços são?
Afinal, não foram os braços
que infligiram esse flagelo?
De quem os braços?
Mas de que adianta isso nomear,
se é minha a dor,
se é meu o chicote,
se essas costas-planície,
desertos largos,
são minhas?
são meus?
Nesse silêncio do meu pensar,
pois não sei falar em silêncio,
e peco por falar sem pensar,
nesse nada de vozes,
só a voz do couro se ouve,
e diz sempre o algo,
o mesmo, o igual,
aquela vozinha cortante,
grave, aguda, sem tom,
gravando seu som na minha carne,
agudo acento da minha dor:
porque dói!
O suor do meu rosto avança
e deságua no flagelo de revés,
misturando sal e vermelho,
manchando de sangue o branco.
Há-de passar.
A dor há-de passar.
Eu hei-de passar.
Só que talvez bem antes, porém,
dessa dor, desse flagelo acabar.
CHICO VIVAS