sábado, 1 de novembro de 2008

ESTILHAÇOS







REVEJO OS VERSOS

E VÊM-ME À CARA AS FACES:

CORRO AO ESPELHO

(EU QUE CORRO DELE),

MAS, ESPERTO, ANTES DE ME VER,

QUEBRO-O.

E JÁ ME PRECAVENDO

CONTRA UM COMPLÔ DOS CACOS,

UNINDO-SE CONTRA MIM,

ESCAPO.

PORÉM, NA RUA, HÁ LOJAS,

E NAS LOJAS (ONDE ALOJAS?) HÁ VIDROS,

E MESMO QUE NÃO SEJAM ESPELHOS,

FAZEM-ME FACE,

E EMBORA NÃO FAÇAM VERSOS,

SE DIVERTEM EM ME OLHAR:

QUEBRO-OS,

SOB OLHARES CURIOSOS

E MAIS O DE UM ATENTO SEGURANÇA

QUE ME PRENDE PELO BRAÇO

E ME LEVA PRESO.

NA SALA: PEQUENA.

NO MENOR: SILÊNCIO.

NA MUDA SÓ HÁ,

COMO UM ESPELHO,

A MOLDURA QUADRADA

POR ONDE ENTRA O SOL

- E JÁ É DE SE IMAGINAR

QUE UMA ARQUITETURA ASSIM

SÓ PODE MESMO TER SAÍDO

DA FANTASIA QUERENDO SE ESPELHAR.

ENTÃO É QUE DESCANSO,

AGORA QUE NÃO CORRO MAIS O RISCO

DE DAR DE FRENTE COM MINHA FACE

NEM DE CARA COM MEUS VERSOS.

ENGANO MEU!

LOGO, NAS PAREDES RABISCADAS,

POR OUTROS, ANTES DE MIM

(QUEM SABE SE CULPADOS

POR CULPA À MINHA SEMELHANTE),

ACHO ESTROFES INCOMPLETAS

DE SAUDADES JÁ PARTIDAS,

DE PARTIDAS TÃO AGUARDADAS;

LÁ, ACHO UM NOME DE HOMEM

CRUZADO COM UM NOME DE MULHER

E FICO A PENSAR

O QUE PODE TER SAÍDO DALI

PARA ESTA CELA ESTAR TÃO SÓ.

LEIO TAMBÉM DE HOMEM O NOME

APROXIMANDO-SE DE NOME DE HOMEM:

E DAÍ?

QUEM PODE TER ESTADO AQUI

PARA DEIXAR ESTA CELA ASSIM TÃO SOL?!

LEIO AINDA NOMES DE SANTOS

E TAMBÉM NOMES DE QUANTOS

O NOME PRÓPRIO SERVE PARA APROXIMAR.

LEIO PLANOS DE FUGA,

MAS NÃO OS ENTENDO

PORQUE NÃO SEI LER PARTITURAS

- E ATÉ QUEM OS ESCREVEU JÁ PARTIU.

ACHO, POR FIM,

TODOS "ESTES" NOMES

APELIDADOS DE PALAVRAS

QUE ATÉ AQUI ESCREVI,

E AINDA MAIS ALGUNS,

COMO SE ALI PUDESSE LER

O QUE O DESTINO ME RESERVA,

SEM PODER ANTECIPAR

SE SAIO DAQUI OU SE HEI-DE AQUI FICAR:

É COMO ENCONTRO A CHAVE DO ENIGMA

QUE TERMINA POR ME ATERRORIZAR,

JÁ QUE A RESOLUÇÃO DOS MEUS PROBLEMAS

ESTÁ EM SUBSTITUIR AS PAREDES

POR ESPELHOS,

E NO LUGAR DO ESPELHO FIGURADO,

POR ONDE SE CÔA UM POUCO DE SOL,

AÍ, SIM, ENTRARÁ A PAREDE.

FICO SEM AR!...

E QUE NÃO SE PENSE QUE POR CAUSA DOS ESPELHOS

QUE ENTÃO HÃO-DE ME FITAR,

MOSTRANDO-ME AOS QUATRO VENTOS,

EM VERSOS, EM FACES;

É POR CAUSA DAQUELA PAREDE CEGA

QUE O LUGAR TOMARÁ

DAQUILO QUE QUANDO ENTREI AQUI

CHAMEI DE ESPELHO

E ERA SOMENTE UMA JANELA

PARA O QUADRADO MUDO OBSERVAR.

É NELA, CEGA, QUE VOU ME MIRAR.

EU, PAREDE, RESISTIREI

OU HEI-DE DESMORONAR?

NUNCA MAIS REVEJO VERSOS

NEM COM OS DE OUTROS VOU ME IMPORTAR.

O DESTINO?...SABE-SE LÁ!


CHICO VIVAS

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

LÁTEGO



A dor do meu flagelo.

A dor e o meu flagelo.

O flagelo da minha dor.

Dor e flagelo: infinito.





Se flagelo e dor: sem fim.





O chicote de couro estreito

em tiras bem cortadas

risca minha carne, atrás.





Dou as costas à dor

e encaro de frente o flagelo:

sem ver meu rosto,

pois não há espelho por perto

e, de longe, vem a dor,

de há muito esse flagelo.





Dou-me dores:

lanço por sobre os ombros

a estreiteza do meu desejo,

atiro-o longe, perto de mim,

seguro firme o chicote...

e lá vai ele,

fazendo zoada na minha carne,

lacerando-a,

um som que não repito

em palavras dolorosas

porque não aprendi a escrever

o sinônimo do meu flagelo.





Antônimo também não sei:

não conheço o contrário da dor

nem o verso do flagelo;

conheço só o couro estriado,

já marcado, escurecido,

de tanto minha carne buscar;

e esta, estriada,

ganha desenho singular:

longas retas cruzando-se

em xadrez irregular

em que dama caberia,

e um rei talvez.

Mas tudo isso é o interlúdio

entre a última visita do chicote

e esta que aqui vai:

Ah!...já foi!





Não posso saber, assim,

sem espelho ter por trás,

e sem olhos para meu verso ver,

o desenho que registro

na carne, nas costas, na dor.





Se um braço se cansa, outro.

Se outro se cansa, outro ainda.

Afinal, quantos abraços são?

Afinal, não foram os braços

que infligiram esse flagelo?

De quem os braços?





Mas de que adianta isso nomear,

se é minha a dor,

se é meu o chicote,

se essas costas-planície,

desertos largos,

são minhas?

são meus?





Nesse silêncio do meu pensar,

pois não sei falar em silêncio,

e peco por falar sem pensar,

nesse nada de vozes,

só a voz do couro se ouve,

e diz sempre o algo,

o mesmo, o igual,

aquela vozinha cortante,

grave, aguda, sem tom,

gravando seu som na minha carne,

agudo acento da minha dor:

porque dói!





O suor do meu rosto avança

e deságua no flagelo de revés,

misturando sal e vermelho,

manchando de sangue o branco.

Há-de passar.

A dor há-de passar.

Eu hei-de passar.

Só que talvez bem antes, porém,

dessa dor, desse flagelo acabar.






CHICO VIVAS

sábado, 6 de setembro de 2008

A DISTÂNCIA QUE NOS SEPARA



APROXIMOU-SE...

OLHAVA-ME CADA VEZ MAIS,
COM CRESCENTE ATENÇÃO,
EM TODOS OS LADOS RETOS
DO MEU ROSTO QUADRADO,
E SORRIA NESSA SUA BUSCA
COMO SE UMA SURPRESA ANIMASSE
SUA VIDA ROTINEIRA.

APROXIMOU-SE...

PASSOU O DEDO INDICADOR
COM FORÇA TÊNUE, MAS DECIDIDA
SOBRE MINHA FACE ESQUERDA
E OLHOU, DEPOIS, SEU DEDO, DIREITO,
FINGINDO NÃO CRER NO QUE VIA:
QUE ERA O DEDO QUE LHE VOLTAVA
COMO QUANDO FORA A MIM.
EXPLICO:
ESPERAVA ARRANCAR COM SEU TATO,
DA MINHA PELE, NO ROSTO MAÇÃ,
A TINTA QUE JULGAVA COBRI-LA,
DE TÃO VERMELHA QUE ESTAVA.
ESFREGOU O DEDO-INSPETOR
NO POLEGAR A SEU LADO
COMO PARA TER CERTEZA
DE QUE NENHUM RESÍDUO TRAZIA:
DE ONDE, ENTÃO, AQUELA COR?
VERGONHA, CRIA, EU NÃO TINHA - ME CONHECIA;
DO NORTE, BEM NORTE, DE ORIGEM NÃO SOU;
CHAMA ALTA POR PERTO NÃO HAVIA,
NEM PRÓXIMO A UM FORNO QUENTE ESTOU
(PROVA DE QUE NÃO ME CONHECIA
TÃO BEM QUANTO PENSAVA).

APROXIMOU-SE...

E ATRIBUIU AOS MEUS OLHOS, MAIS DE PERTO,
UM RUBOR BEM MAIS INTENSO
E ATÉ ADMITIU
QUE A DISTÂNCIA JÁ LHE TURVAVA
AS VISTAS PARA O VERMELHO.
PESQUISOU, FAZENDO-ME
SEU OBJETO DE ATRAÇÃO.
MOLHOU A PONTA DO INSPETOR
NA LÍNGUA INDICADORA
E PASSOU-O SOBRE MIM,
DE NOVO,
COMO ANTIGAMENTE:
E MEU VERMELHO AUMENTOU,
COMO ANTIGAMENTE,
DE NOVO,
MAS NADA DE TINTA DALI RETIROU.

FOI-SE...

SE HOUVESSE SE VIRADO, E NÃO O FEZ,
TALVEZ ÁRA EM SAL NÃO SE TORNAR,
TERIA VISTO, A CADA PASSO QUE DAVA,
MINHA FOGUEIRA SE APAGAR.

DE COSTAS, PARA MIM,
APROXIMAVA-SE...
...CADA VEZ MAIS DE LONGE.

CHICO VIVAS

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

INVIOLÁVEL



Calei.

Emudeci.

Fechei-me em mim.

Vesti roupa apertada.

Casei todos os botões.

Levantei a gola.

Desci a bainha.

Apertei o cinto.

Entrei numa caixa

e ela foi lacrada.





A caixa, mandei pôr num tonel,

que foi tampado,

que foi vedado.



O tonel, ordenei

que um barco levasse;

e ao mar,

nada mais pude ordenar.

Mesmo assim,

o barco chegou ao seu lugar:

uma montanha isolada,

com uma gruta estreita,

do diâmetro do tonel.



Empurraram-no para dentro

e, com pedras por fora,

separei-me do mundo.



O coração que, apaixonado, batia, dentro da roupa,

dentro da caixa,

fechada num tonel,

escondido num extinto vulcão,

batia alto.



Reverberava na minha nudez,

no meu silêncio sepulcral;

agigantava-se em seu soar;

e tão forte já ficava,

que o soar de trovões

era como um coração...

que apenas bate...

sem paixão.



Não suportei: ensurdeci.

E ao não mais ouvir

o meu coração tilintar,

duvidei de mim.

Naquele ermo em que me meti,

nada mais vi

e duvidei de mim.

A falta de ar tirou-me o olfato

e duvidei de mim,

Minha boca seca

gosto nenhum sentia

e duvidei ainda mais.

E como ninguém me tocava,

descri de tudo.



Em nenhum momento, porém,

deixei de acreditar, de coração,

naquela minha paixão.

E na cabeça já quase vazia,

um pequeno ruído resistia,

como um coração a bater:

e quanto mais eu pensava,

mais seu som aumentava

até beirar o insuportável.





Quis romper os meus invólucros:

quis sair da montanha,

sair do barco,

sair do tonel,

sair da caixa

sair da roupa apertada -

sem cinto,

sem bainha,

sem gota,

sem botões -,

quis sair de mim.

Mas, temi que, de volta à vida,

meu peito,

mesmo cheio de paixão,

não me fizesse ouvir mais nada:

e então...

e iria duvidar de quê?






CHICO VIVAS

quarta-feira, 2 de julho de 2008

SUEÑOS



Uma gola rendada, espanhola,
A Velásquez ou a outro pintor,
Emoldurava o rosto pálido, lascivo,
De boca vermelha como sangue
E não era romã, era pele louçã,
Tez de louça, porcelana sã.

Olhos lhe rasgavam como se fora
Um vidro trincado em simetria.

Se arrancasse a gola gomada,
Nada na face me despertaria:
Nem olhos gateados, quando abertos,
Nem boca mordida, quando fechada,
Nem a cútis macia, quando seca
E não menos suave, se molhada.

Se Velásquez fosse, no máximo,
Nome antigo e herdado
De um imigrante espanhol
Que espalhara seu nome próprio sem critério
Numa longa descendência bastarda,
Nada me diria aquela gola,
A não ser do desconforto da moda,
E nem roubaria minha atenção
A doentia palidez
Num contraste de dor
Com a boca encarnada.

Se jamais encostasse meu rosto
A um outro, seco ou molhado,
Nada disso me faria pensar
Em uma gola enfeitada
A me remeter, sem hesitar,
Para rendas mais íntimas.

Pobre como sou, não viajo a “espanhas”,
Não visito exposições de “graças”
Nem compro livro de “artes”.
Assim, pobre de imaginação como sou,
Para mim, uma boca só isso é,
Qualquer tom que ela tenha.
Uma pele jovem ou enrugada
É macia ou de áspera sutileza.
Olhos quase nuncavejo
-se nem viajo!-,
Pois fecho os meus, trincados,
Trancado eu neles como estou,
Trancadas neles como estão
As lembranças, as saudades,
As memórias, as recordações
De antigas aulas de pintura:
De nobres, de reis e cortesãos...
E de um homem, quem sabe,
Com um pincel numa das mãos
A pintar infanta e anões.


CHICO VIVAS

quinta-feira, 12 de junho de 2008

DOIS HOMENS ABRAÇADOS

MySpace Comment



No alto vejo abraçado
um homem a um cristo de pedra:
é um abraço distante
(e eu me pergunto:
o que estava fazendo tão alto?)

Mais perto do homem,
outro homem ao longe,
e tanto que quase não se o vê:
quão distante da pedra tal homem?
E talvez seja dos dois
O que mais esteja abraçado.

O de pedra, homem também é,
e dizem que,
negando essa sua natureza,
não tem um coração assim,
um coração feito do mesmo material
de que se fez o resto do homem.

Dá para confiar em um homem assim:
Um homem que é de pedra,
mas cujo coração, não?
Um homem que se abraça a uma pedra,
e não se dá conta de que
é a um homem que (se) abraça,
e seu coração rejubila-se,
desde que confie na condição pétrea
desse homem de coração mole;
porque se desconfiar do homem,
da real matéria de que é feito,
ou chegará à conclusão de que
o coração Dele é de pedra também,
ou de que, sendo coração como o seu,
é a outro homem que está unido,
a olhos vistos.

Se o tal Homem de pedra
não for tão de pedra assim,
se for mais homem,
o que sentirá
ao toque do outro:
Seu coração amolecerá,
caso seja de pedra,
ou, sendo de outra matéria,
endurecerá,
com essa aproximação,
com esse abraço,
tão justo, afinal?

Haverá pecado em amar?
Em, às vezes, ser um homem de pedra?
Em ter coração mole?
(isso lá é coisa de homem?!)
Em ter o coração duro como pedra?
Em acreditar em outro homem,
mesmo que não creia tanto no material?
Em abraçar uma pedra
em lugar de um homem,
e crer que esse homem compreenderá
seu coração de homem?

Haverá amor no pecado?
Em às vezes amar,
quando se quer tão-só pecar?
Em ter o coração mole
e se deixar levar pelo amor,
quase não gozando o pecado?
Em acreditar no amor de outro homem?
Em crer no valor do pecar
para amolecer a dureza da pedra
que é a matéria do homem?
(só os leitores de Shakespeare
é que crêem no sonho com matéria)
Em crer que pelo amor se pode chegar
Ao Homem?
Em não duvidar de que para se chegar lá
é preciso pecar,
para que isso empreste à pedra do Homem
um coração,
tornando-o digno de se O abraçar?


CHICO VIVAS

sábado, 10 de maio de 2008

NADA DE LÁGRIMAS


A amante do rei morreu:
Viva a amante do rei!
E correi para avisar,
Rapidamente,
Às outras amantes
Que o rei vivo está,
Que ele não morreu,
Que sequer morria de amores
Pela amante que acaba de morrer.

Errei, talvez, ao dizer:
Que viva!
Que viva a amante do rei,
Já que foi ela que morreu,
E o rei, como se sabe já,
Bem vivo está.

Mais uma amante se vai,
Saindo com toda discrição,
Como convém, se não às amantes,
À amante do rei.
E sai assim, discretamente,
Quem com pompa viveu,
Mesmo não sendo rainha,
Mas, eventualmente,
Sendo mais que o próprio rei.
O fato, porém, é que ele vive,
Vivo está para as outras amantes,
Enquanto que ela, rainha por um dia,
Mesmo que por vários,
Morreu.

Viva Jeanne!
Viva ou morta.
Viva Jeanne-Antoinette,
Nunca, em vida, uma morta-viva,
Mas agora morta.
Viva ela!
Marquesa de Pompadour,
Madame Rococó,
Amiga de Voltaire,
E amante do rei,
Que vivo está
Para ter amantes
A seu bel-prazer.

Ontem, os salões;
Hoje, a tumba:
Será que o esquecimento virá?
Não será isso o tal sono eterno,
Embora digam que dormir bem,
Querendo dizer muito dormir,
À memória faz bem?

Toda tumba é um salão
Em fim de festa.
Velas apagadas, sol eternamente dormente
E que jamais de novo nascerá.

O rei, este vivo está
E há de outra amante tomar:
É “de riguer!"

Mas, e a rainha:
Que é de Maria?

Afinal, há tantas Marias
E bem mais que rainhas;
E houve, escutem, muitas rainhas Marias.

D’Etiole madame,
Etoile Jeanne.
Ah! há tantas amantes!
Algumas são Maria
E até são bem mais que rainhas.

Para a rainha, o olvido
(e que nenhuma me ouça).
Da amante, o estilo.
Em reis, já quinze Luíses:
Du Barry.

Viva!



CHICO VIVAS

sexta-feira, 2 de maio de 2008

PARAÍSO PERDIDO




Deslizo a mão sobre a maçã vermelha
e sinto nos dedos sua face lisa
e sujo as unhas com um azul impossível:
se a comer, de que cor será seu caroço?


Deslizo-me sobre um piano alvinegro
e produzo um som enrugado
que aos meus ouvidos cansados
canta tons pálidos sem cor.


Eis então a maçã -de que cor?-
sobre o piano de "calda"
e certo mel escorre vagaroso,
como as dores açucaradas do meu corpo,
e ao pingar gota a gota,
de cima, desabando sobre as notas,
são como dedos líquidos e sem rugas
tocando, vigorosos, uma música descolorida.


Mas, sei lá por que força
a maçã se move sobre sua própria forma
e rola no azul do infinito piano,
igual a um mundo -de que cor?-,
e não pode mais parar.


Ela desliza sem deixar rastros quaisquer
e dá voltas sobre o piano até cair
nos teclados e música assim produzir.
Não se segura aí, e continua
vivendo seu destino de mundo, essa maçã,
e talvez mais velha que o mundo,
permaneça lisa.


E como estrela no céu que perde o prumo
(é a estrela, não o céu, que perde o prumo)
das notas enfileiradas no piano afinado
e desaba no chão.


Com o peso aumentado com a queda,
como estrela a vir de muito longe,
espatifa-se ali.


Um verme há muito escondido
naquela estrela perdida por aí
mostra-se em meia à carne da maçã
sem saber para onde ir.


Que rugas trará do céu?
Será que o verme consegue subir
de volta ao teclado do piano
e daí subir ainda mais,
de volta à sua estrela azul?




CHICO VIVAS

sábado, 19 de abril de 2008

MARINHEIRO-SOL





Acostumado às viagens longas,
Daquelas em que,
Apontando-se com o dedo
Um horizonte sempre à frente
Jamais se toca o destino,
Capitão de curso comprido,
Usando camisa de mangas curtas,
Indo ora aos trópicos,
Encontrando mangas de todos os tipos,
Ora a climas mais temperados,
Com vinhas de todas as iras,
Com vinhos de todas as safras,
Dou, agora, de ré
E re-volto-me,
E volto-me, de ré, aos períodos curtos.

Porém, a cada linha,
Nesse cruzeiro emaranhado,
Como se atado a velhos hábitos,
Pelo continuado uso do cachimbo,
Quero alongá-la, puxá-la, esticá-la,
A cada repuxo que dou à mão,
Como se ela fosse um cavalo arredio,
Dizendo-lhe “contenha-se”,
Pondo-lhe, assim, um freio,
Freando tantas palavras desmedidas,
Intumescendo a língua
Que deságua na própria boca,
Quase a me fazer babar,
Quase a me fazer, de novo, menino,
Menino novo:e tão homem já sou!
Tanto assim que vou, asas cortadas,
Em jornadas compridas,
Já sem capitão a me ordenar
“é por aqui, é por ali”.
E, ai, que falta me faz!

Quem me dera uma voz de comando,
Um coro de soluções,
Uma sinfonia de êxitos.

Isso, no entanto, tão à perfeição,
Pode ser um sonho, mas não é vida,
Mesmo que seja a vida que se quer.
É só a fantasia de bem viver,
Acreditando-se assim
Que bom é mesmo viver sem os acasos,
Como se nos trópicos não se achassem temperos,
Como se não houvesse mangas, de qualquer tipo,
Em climas, naturalmente, bem temperados.

Viver assim, com todas as sortes já concertadas,
É fazer viagem só por viajar,
Sem mesmo pela escotilha olhar,
Conhecendo-se já os portos e os encalhes,
Fugindo-se destes, atracando-se com aqueles,
Num gesto de paz.

Se assim a vida fosse:
Que lições dela se poderiam tirar?
Portanto, pouco dado a revoluções,
Contrariando o próprio curso da minha mão,
Se o desejo insiste no comprimento da linha,
Dou-lhe, curto e grosso,
Gentil ao máximo,
Sem excesso de delicadeza, no entanto,
Curta expressão,
Quase a torná-la um quase-nada,
E o desejo, quase-tudo.

Quase, porém,
Quando de mim mesmo é que se trata,
Quando trato é mesmo de mim,
Não é nada, não é tudo,
Sendo só o meio-termo,
Esse vício dos desequilibrados,
Tirania à qual se atam os pendentes,
Crendo-se livres,
Escravos do bom-senso.

Bom, senso, como se vê, não é meu forte:
Minha fortaleza é o exagero (de linhas)
Que me faz ser longo, capitão,
Em caminhos curtos, contra a mão,
E quase infinito, se a viagem longa já é.

Minha fraqueza é acreditar que posso,
Palavra a palavra,
Linha a linha,
Viagem a viagem,
Expressar, da lembrança, tudo.

E o resultado disso, não raro,
Se não é nada,
Que isso já seria um semitudo,
E quase: mas, quase o quê?
É quase lembrar sem esquecer.
É quase esquecer, de vez, de uma por todas,
De não mais lembrar.
Fim da linha: boa viagem...
Vida a fora!

CHICO VIVAS

sábado, 8 de março de 2008

SE UMA MARIA REDIME, TODA ANA ENLOUQUECE






Quero fazer a exegese
De uma mulher obscura,
Uma mulher clara como o dia,
Mas como um dia de lua.

Sei que cresce, sei que míngua,
Como todas as marés,
Sei que as puxa e se afoga no mar,
E com mais um sopro se as afasta para lá.

Olha, olhos perdidos, o nada recorrente,
E, assim, encanta-se com o que vê;
E se olha, olhos perdidos, para si,
É o rio próprio que não pode conter.

Mas, mulher, digo-te eu:
Esses oceanos são comuns.
E mesmo eu,
Que não sou novo, não sou cheio,
E já não tenho cara de lua,
Experimentei alguns só meus.

Se cala, essa mulher,
Nela pulsa a palavra contida
E bem mais forte que seu coração;
Se diz, com pressa, a palavra maldita,
Recita, tácita, uma oração.

Blasfêmia! alguém diria.
Mas quem o diz sem atentar
Para a contida beleza da palavra,
Apenas diz amém sem nada rogar,
Diz amém ao amém
E um outro amém ao “assim seja”,
Sem saborear “kirche” em alemão,
Esperando, em português, a cereja que não virá.

Sei que há tortura, desventura,
Que há martírio, sabedoria,
Bebidas solitárias e partilhadas tonturas
Em toda Ana, uma Maria.

Em todo homem, um devasso;
Em toda mulher, uma mentira;
Em todo nome, um destino;
Em toda vida, mortes várias.

Não faço rimas:
E nunca as quis fazer;
Minha intenção, a princípio,
Era desvendar a mulher,
Tirando sua roupa toda,
Sem sua nudez revelar,
Porque reais intimidades
Não são as marcas que se tem
Escondidas pelo corpo,
Escavadas, silenciosamente, em grotões.

A chave da alma que procuro
Se acomoda a uma única fechadura.
E ser homem, ser mulher - não importa -
É ser na literatura pia
Um rico que virou pobre;
É ser na história real,
Uma lágrima de Maria,
Trazendo a pobreza no nome,
Não querendo filhos fazer
Para não lhes legar a palavra que lhe é fácil.
E se os tiver,
isso é estimulá-los a sofrer
Sem poderem nome ao seu sofrer dar
(que isso é sofrer ainda mais).

E sem nome, que do sofrer se dirá,
Se há compêndios a estudar
De magia alvinegra
Para filtros do amor.

Ao (se) amar, desprende-se de si,
Solta-se e se flutua no ar:
Se isso encanta olhos alheios,
Os que vêem sem estarem no olho da paixão,
Os teus, Maria, como hão-de ficar?
Os teus, Ana, como hão-de chorar!

Se choras, é que já és mãe,
Mesmo que jamais tenha tido um filho:
E as mães, Ana ou Maria, devem chorar,
Ainda que finjam que choram pelos filhos,
Filhos que jamais tiveram.
Então, mães, choram por quê?

Se te alegras e não tens filhos,
Perguntam-lhe:
Mãe, para que viver assim?

É que Maria não nasceu assim,
É que Ana nem sempre foi assim:
O sofrer lhes veio depois.

Em Ana, a vida toda
Só de paixões se compôs.
Paixão francesa: loucura;
Paixão inglesa: rubor;
Paixão grega: indistinta;
Paixão sem pátria: furor.
Porque paixão deve ser só,
Mesmo que só não haja paixão.
Deve ser só o rolar
E não o aspecto do chão.
É nesse rolo se ferir,
É num colo macio se machucar,
É em braços comprimir-se,
E com mais se afastar.

Quem poderá negar a Ana,
Uma Maria qualquer que seja,
Seu complemento nominal?

E a Maria, como lhe recusar
O benefício de ser Ana,
Sem mais complementar.

Eu quis desfazer o segredo,
Mas minha dúvida só aumentou.

Por fim, quis encerrar com rima,
Mas tudo em branco hei-de deixar.

CHICO VIVAS

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