segunda-feira, 1 de abril de 2013

BAND-AID




Sonhei que uma nuvem se abria
E vertia sangue;
Mas não havia hemorragia.
Caia gota a gota,
Como se lágrimas fosse
De um Deus
Que verte sangue dos olhos
E tem lágrimas em Suas veias.

Continuei sonhando...
E nesse prosseguir
Fechei, da nuvem escancarada,
Essa sua abertura,
Usando um curativo alvo
Que vedava a gota.
Mas logo a seguir
O branco curativo
Manchou-se de sangue,
Levemente,
Avermelhando,
Evidentemente:
Eram como olhos que choram
E param de chorar,
Mantendo porém a cor da irritação,
Mesmo que não haja motivo.

Hoje, sei lá quanto tempo essa noite durou,
E na própria noite não tinha noção de tempo;
Não sei sequer se então dormia de dia.
O fato é que ainda sonhei
Que o tempo desfez a aderência
Do esparadrapo com a pele da nuvem,
Até se soltar de vez,
Como fruta madura a cair do pé,
Embora não o tenha machucado,
Deixando, porém, a nuvem marcada
Com a forma do retalho
Do curativo despregado,
Como uma dor que, enfim, passou,
Mas insiste em se fazer presente
Na cara limpa,
Em esgares sutis.

Agora, o que vem eu não sonhei
Porque foi insone que aprendi:
O sol queima a pele por igual
Sem distinguir o talho que há
De todo o resto são,
E até mesmo a nuvem,
Se um dia se tocar,
Talvez nem vá se recordar
Que uma fenda ali se abriu,
Fazendo gotejar,
De um Deus que tem sal nas veias,
As lágrimas tão iguais,
De um vermelho que resiste nos humanos olhos,
Depois de (...) tanto chorar.

CHICO VIVAS

sexta-feira, 1 de março de 2013

AGUACEIRO



Que chuva que cai!
E você no meu corpo sobe,
escala-o sem patamar
e isso me surpreende,
e isso me faz pensar,
embora não devesse ter cabeça
a não ser para a chuva que cai,
que você subindo em mim
e tão improvável quanto seria
uma chuva que não cai
e cujos pingos se elevam
como se da terra molhada
chovesse direto para o céu.


Mas a chuva cai
e alto você já vai,
tanto que já me perco
e não sei por onde mais
poderei voltar ao solo
depois desse muito ascender,
sem frio, que seu corpo não deixa,
com calor que me deixa seu corpo.


Pensando melhor, percebo;
percebo, mas não penso agora
que quando a chuva cai,
ela forma poças rasas
ou inunda as ruas demais,
então vem o sol,
porque ele vem uma hora ou outra,
e seca,
seco e objetivo,
e isso é como a chuva que não cai
e que sobe para os céus
em vapores condensados,
como é você me alteando,
alternando chuva e sol,
ora cansando, vapor,
ora vacilando, torpor.



E um fantasma começa a surgir.


E se a chuva que cai
e que depois há de subir
não passa do céu,
não sei onde você vai parar
com esses céus dentro de céus
e esse não mais acabar
de olhar alto cada vez mais
para ainda mais alto
querer alcançar,
levando-me junto.


E se a chuva cessar?
pensei isso agora:
será que você vai descer?
e as descidas são sempre mais rápidas:
isso há muito eu já sei,
porque se há chuvas que caem
e se apagam lentamente,
há outras chuvas que caem
e passam rapidamente.


Você: descerá bem veloz
ou me trará calmamente
ao chão do qual me levou
a alturas jamais exploradas?
Isso só hei de saber
quando de todo a chuva passar
ou quando você, displicente,
pegar o guarda-chuva que trouxe,
olhar para o céu a buscar
se resta sinal de chuva ali,
e ir-se, guarda-chuva fechado.


Se no meio do seu caminho
o tempo outra vez mudar
e de novo uma chuva cair,
será fácil para você:
basta abrir o guarda-chuva
para a chuva deixar de te molhar.
Mas, e eu?
Se a chuva voltar a cair,
sozinho, sem você,
como farei para subir?
Sozinho, sem você,
só me restará torcer
para a chuva cessar,
e não para que não alague as ruas
e esses rios o traguem de vez,
mas só para aplacar meu desejo
de continuar subindo, subindo...
como uma chuva que não cai,
e só sobe como se
do chão chovesse para o alto.


Em último caso,
se não voltar a chover,
tomo na mão o regador
e vou as flores regar,
deixá-las belas, viçosas,
embora não as queira colher.




CHICO VIVAS

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

VALE


De nada me vale um valha-me Deus.
Um Valhala de nada me vale.
De nada me vale um verdejante vale.
Um vale-esperança de nada me vale.
De nada me vale um vá ali:
Eu não vou, e isso de nada me vale.
De nada me vale a mais-valia.
(Já não valia no tempo em que valia alguma coisa)
E saber que eu valia mais de nada me vale.
Na hora do aperto de nada me vale
Conjugar com correção o verbo valer,
Sem todas as suas pessoas,
Por mais heterônimos que tenha.
De que me vale o mais doce dos rios?
Um vale de lágrimas de nada me vale.
De nada me vale ser um ás ou qualquer coringa.
E todas as Rainhas (salve!) de nada me vale(m).
De nada me vale ver passarinho verde.
E versos passarinho-passarão de que me valem?

CHICO VIVAS

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

TRÁFEGO AÉREO




À noite,
Cego como me faço,
Bato-me contra um pássaro
Estrábico
Que estilhaça meus olhos
Baços,
Opacos,
Como se fossem
O para-brisa de um carro,
Molhado,
Encharcado
De recente névoa

O tal pássaro
Não tem penas,
Mas também não é calva ave.
Ele não tem
Pena de mim também.
Ele é de aço.
Já meus olhos truncados,
Abertos,
Quebrados em mil pedaços,
Ainda todos juntos,
Vêem agora o mundo em volta
Como círculo empenado,
Quase quebrado.
E quando olho o vazio,
O vazio partido,
E se tomo meu próprio partido
E reclamo do pássaro,
Meu outdoor alaranjado,
Voo vadio,
E minha voz se esvai
No vácuo macio
E não se propaga,
Resta-me então
Vagar pelo cheio desta vida,
À noite,
Ou mesmo de dia,
Cobrindo os olhos
Com as mãos inteiras,
Cheia de dedos,
Com medo de que um avião,
Emplumado,
Aprumado,
No auge do seu cansaço,
Choque-se sem baque
Contra mim
E eu lhe quebre o pára-brisas
E não tenha como pagar,
A menos que arranque meus próprios olhos:
Mas o que ele haveria de fazer
Com esses meus olhos fendidos?
Ao voar alto veria
O mundo todo de cima
Como um mosaico,
Um quebra-cabeça maluco.
E eu,
À noite,
Meio tonto,
Perdida a cabeça:
Como ele me veria?
E eu,
De dia,
Ainda meio tonto,
Cabeça vazia:
O que seria?
E se eu,
Enfim, acordasse,
Sensato e com razão,
Com a cabeça no seu devido lugar:
De que me adiantaria?...
Se nem relógio eu uso,
Se não posso (me) atrasar:
De que adiantaria?...
Se não posso ver
Um pássaro à minha frente,
Assim,
Se olhos quebrados,
Num acidente noturno,
Quando um choque
Entre mim e o pássaro
Fez-me cair na armadilha,
Como ele cai no laço,
De confundir o sonho
Com a devida realidade,
Nessa idade em que
Só sonho
À noite
Porque de dia,
Viajo
Nas penas de um avião
Que voa em busca
De ares mais quentes,
Fugindo dos invernos:
Se se desviar de sua rota,
Chegará aos infernos...

E onde terras mais “ardentes”?


CHICO VIVAS

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