
Engano a gaiola
Com um pássaro fingido
E ela se abre
Como se com boca gulosa
Quisesse capturar a presa,
Engoli-la por inteiro.
No lugar da ave, há palavra:
Uma emplumada, canora.
Do corpo da ave enganada
Retiro uma pena,
E ela canta –
Não a pena, claro,
Que, aliás, é clara e é escura,
Mas a própria ave que
Por causa das plumas
É igual às penas,
Escura e ave clara –,
Mas logo ela silencia,
A tal ave cantora.
Com a pena, há palavra,
E no lugar da pena, na ave,
Arrancada,
Uma palavra-penso,
Sem cogitar de cura,
E ela cala.
Com a palavra,
Saída à pena,
A duras aves,
Suaves plumas,
Escrevo a canção
Para esse pássaro ludibriado.
Penduro-a diante de seus olhos,
Presa às grades
Da gaiola-bocarra.
E ela, a ave, sem dó,
Sem piedade de si,
Porque não morde as penas,
Canta,
Canora,
Cantora,
A canção que lhe fiz.
E canta como se,
E entoa, como não?,
A falta da pena
Da qual não mais se lembra,
Mais notas eu lhe desse,
Cantaria alto, baixo;
Cant’alto, contrabaixo,
Contralto, soprano,
Espantando as minhas penas:
Ave emplumada, cheia de mim.
Se me arrancarem um dó,
Sinto essa falta no peito
Como se dali, a frio,
Me tirassem uma pluma,
Acrescentando-me outra pena.
Outra apenas,
Em meio a tanto peito.
E, ao contrário da ave,
Que é Eva,
Quanto mais desplumado,
Ou mais desemplumado, quanto?,
Não canto;
Silencio,
Como se agora soubesse
Que fora enganado,
Tomando por ave a palavra,
Tomando por Eva o contrário,
Tomando a mulher por homem,
Bebendo o homem com colher,
Aos sorvos sonoros,
Impolido,
Ao contrário da ave que se sacia,
Silenciosa,
Num largo rio de água boa
Ou num pequeno cantil
Preso a um canto da gaiola
Em que canta,
Ainda que mais uma pena
Se lhe arranque sem freio
E só uma me reste agora.
E se esta também se for,
Tirada por mão qualquer,
Ficará a ave sem dó
Ou, diferentemente do peito,
É um homem ou será mulher?
Sou eu ou será melhor?
Estranho esse pássaro canoro,
De cá para lá na sua gaiola,
Ostentando seu canto
Com uma única pena
Ainda presa a seu corpo,
Exposto peito
De um jeito de fazer dó.
Eu, todo emplumado,
Reposto medo,
Eu cheio de dós.
Dou-te as minhas penas, ave!
Dou-te meu peito, contrário!
Dou-te meu silêncio, Eva!
Dou-te meu canto, mulher!
Mas sempre em silêncio...
Homem que sou, contrário
A que se beba fazendo barulho,
A que se ame com freios,
Faço da ave um verso
E invento a própria mulher.
Faço do homem a face
E a cubro com plumas,
Sem faltar uma sequer.
Penas claras e escuros dós
Que fazem do rosto do homem
O mesmo que é das penas.
No meu lugar, as aves.
O meu contrário, Adão.
No meu Éden, a palavra.
Na minha gaiola inventada
Só aves amenas: o contrário da solidão.
CHICO VIVAS