
Um velho cândido de cabelos brancos
martela um prego de cabeça dura.
Bate o velho com o martelo.
Bate o martelo no prego duro.
Por mais que bate o velho,
seu rosto é sempre cândido
e seu cabeço é sempre branco.
Por mais que bata o martelo,
pouco se sabe de sua vida-velha.
Do prego, sabe-se que entra,
perfurando a madeira dura,
a parede dura,
e quantas mais superfícies
se apresentem a sua ponta fina,
levando golpes certeiros
de um martelo às vezes incerto,
dadas as mãos do velho,
com a força de um velho cândido,
uma força que, nada bíblica,
não está nos cabelos brancos.
O que faz o velho com esse prego?
Nada.
A cada dia que passa,
como um calendário rudimentar,
como uma ampulheta que lhe martela
a cabeça o tempo todo,
vai pregando:
na parede,
na madeira,
cada dia com um prego.
Prefere assim o cândido homem,
o homem que preferia não ter
esses seus cabelos brancos.
É que os tantos dias ele viveu
com cabeça negra e rosto cândido
já se lhe despregaram da memória,
e quando, agora,
se olho no espelho,
nem a fantasia lhe pinta o rosto,
um rosto cândido, cabelos brancos.
A cada dia, um prego.
Prega cada dia com um.
Cada prego é um dia.
Conta cada prego como um.
Mas seus golpes de martelo
nunca vão até o fim,
não enterram todo o dia,
deixa do prego a cabeça de fora,
deixa que do dia
uma lembrança aflore.
Com todos esses pregos salientes,
como ganchos sem nada sustentarem,
a não ser a saudade de um dia,
a certeza de um prego como guia
da memória em que não mais se fia.
Usa-os para pendurar
os retratos de uma vida.
Em algum lugar o rosto cândido
é cingido por moldura negra.
Cabelos alinhados que se foram,
dias ordenados que se foram,
pregos esgotados que se vão.
Força no martelo que se vai.
O rosto ainda é cândido,
quando lhe pregam o caixão.
CHICO VIVAS